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|Crítica| 'Propriedade' (2023) - Dir. Daniel Bandeira

|Crítica| 'Propriedade' (2023) - Dir. Daniel Bandeira

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Propriedade' / Sessão Vitrine

 

Título Original: Propriedade (Brasil)
Ano: 2023
Diretor: Daniel Bandeira
Elenco : Malu Galli, Zuleica Ferreira, Tavinho Teixeira, Samuel Santos, Ane Oliva e Edilson SIlva.
Duração: 100 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Thriller de Daniel Bandeira busca olhar para a ambiguidade do choque entre os dois lados na luta de classes, e sustentar o suspense se revela mais importante que o discurso político

Nos últimos anos foi inevitável que o cinema nacional digerisse o cenário político nefasto que vivemos. A resposta de muitos filmes foi se apoiar no discurso, em uma mensagem muito clara, apresentada geralmente em frases de efeito, usando o cinema como mera ferramenta para apresentar ideias, mais do que se preocupar em inseri-las a partir dele. O que Daniel Bandeira realiza, porém, é um cinema de gênero bem arquitetado em seus elementos, em que os debates existem, mas não são mais importantes que a tensão, a violência, os absurdos das consequências que vão sendo desencadeadas, e a sensação desesperadora de que não há saída para ambos os lados. O embate entre os dois polos ocorre em uma espécie de divisão de pontos de vista, inserida no primeiro contato que brevemente retorna na narrativa para que todos sejam devidamente apresentados e, assim, o espectador tenha a chance de conhecer as partes e seguir esse caminho alternando visões. Mas, ainda que não veja só o pior nem o melhor de seus personagens e núcleos, essa escolha em não focar na clausura e desespero de Teresa (Malu Galli), como seria possível imaginar após a introdução criar uma empatia inicial com essa mulher, dá a chance para que os trabalhadores explorados da fazenda não sejam vistos apenas como ameaças, explorando uma complexidade das relações e em como essa trama de absurdos coloca ambos os lados numa situação impossível de ser resolvida. Mesmo que use elementos bastante comuns e batidos do gênero, são bem executados, de forma que é inevitável sentir a angústia da clausura dessa mulher da elite atravessada por uma violência que tem raízes bastante antigas e complicadas, bem como estabelecer uma torcida por esses trabalhadores explorados. O engajamento é com o filme, com sua trama, mais do que uma ligação direta com seu plano de fundo político, a luta de classes existe, importa, mas não há apego específico com seus personagens, é o próprio thriller que fisga e, por meio dele, surgem as ideias e comentários nos cantos, sem precisar sustentar cada conflito em diálogos expositivos ou em um maniqueísmo raso.

O vídeo que apresenta a situação, filmado de um celular, introduz o trauma da protagonista bem como contextualiza um cenário muito maior. É sabiamente utilizado como um ponto que não fica sendo resgatado a todo momento, Bandeira usa bem seus elementos e sabe como não desgastar sua narrativa com eles. É possível compreender o Brasil de que estamos falando, a elite que está sendo retratada, e assim, o núcleo dos trabalhadores da fazenda aparece como uma surpresa, já que a princípio o pavor de Teresa era bastante digno de empatia, e isso ganha outra profundidade aos poucos. Seu choque com o grupo revela nuances mais complexas, a retirando dessa posição somente de vítima, mas nunca vilanizando completamente a mulher. O mesmo ocorre com os fazendeiros, lutando por seus direitos, colocados em uma situação terrível por pessoas egoístas e movidas pelo capital, nunca levando em conta o fator humano, e que, ainda assim, não são apenas mocinhos, são um corpo formado por diversas pessoas que agem e reagem de formas diferentes, muitas vezes também cruzando a linha para um lugar recriminável. É uma escolha corajosa, não colocar um lado conta o outro numa oposição óbvia do bem contra o mal, o pobre trabalhador explorado contra o péssimo patrão, e isso às vezes rende uma ou outra situação problemática como o uso de um dos personagens que se torna mero recurso para que a narrativa se movimente, hora sendo violento demais e fora de proporção, hora salvando a mulher no último minuto para que a trama continue. Mas, é nessa preocupação maior com o gênero, que ele caminhe e siga funcionando a qualquer custo, que o filme ganha mais força. Seria fácil se apoiar em grandes frases de efeito e na simplicidade que os dois polos podem representar, mas o caminho de “Propriedade” é mais difícil e, dessa forma, mais propenso a despertar reações diversas com seu resultado.

O grupo de fazendeiros carrega um elenco bastante forte, mesmo que a quantidade de personagens sem um protagonismo bem definido torne seus nomes facilmente esquecidos, existe um trabalho para que cada peça tenha suas próprias atitudes, o que não os dissolve totalmente, porém nem sempre dá conta de todos, alguns se perdem no caminho, mas é capaz de sustentar seus pontos mais fortes em suas diferenças, para o bem e para o mal - aqueles que se rebelam e dão combustível para a trama e os que se organizam para controlar as situações. A oposição mais ou menos desenhada nas duas mulheres não se firma muito por justamente existir apenas Teresa de um lado e essas tantas outras pessoas tomando decisões do outro. É a lógica de um grupo maior, à mercê do destino, contra poucos poderosos que se privam conscientemente da liberdade em prol da segurança. Para os trabalhadores existem as ferramentas e as estratégias que podem ser pensadas coletivamente, para o outro lado existe a blindagem, a tecnologia e o dinheiro, mas a sobrevivência só existe se trancando, se isolando, sem encarar de frente as batalhas. O reforço do metal e do vidro serve também como uma barreira de incomunicabilidade, já que não há diálogo entre as classes, Teresa se recusa a ouvir ou a dizer qualquer coisa que seja, se limita a abrir sua janela para jogar algumas notas. É bastante satisfatório quando a solução encontrada por eles é justamente enterrar o patrimônio junto com sua inimiga, bem como ela mesma aceitar seu destino, pois lhe parece melhor morrer em sua jaula reforçada do que enfrentar sua própria sorte do lado de fora.

Bandeira é pessimista no cenário, não há saída, não existe como conciliar (ainda bem), muito menos como resolver, é como se apenas um dos lados pudesse sair vivo e as consequência posteriores pouco importassem, só interessa o aqui e o agora dessa tensão. É bem possível que, não fosse o estado político totalmente assustador em que vivemos, o filme seria muito bem recebido por uma audiência maior nos cinemas, mas é claro que a retratação dos trabalhadores pode se tornar munição fácil para uma parcela criar aversão com a obra, e talvez a violência desmedida de alguns personagens não ajude nesse ponto, mas é ótimo que o diretor escolha fazer seu filme como bem entende, bastante focado no gênero e em sua execução competente dele, independente de como cada ala política vai se sentir com o resultado. A mensagem existe, afinal, é base da trama, mas o cinema é o maior objetivo.


 

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