|Crítica| 'Entre Dois Mundos' (2025) - Dir. Emmanuel Carrère
Crítica por Raissa Ferreira.
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'Entre Dois Mundos' / Pandora Filmes
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Entre o embate ético e o retrato social, Emmanuel Carrère aplica distanciamento evitando maior comprometimento com os temas levantados
Quando Chrystèle (Hélène Lambert) entra na primeira cena de Entre Dois Mundos, a sugestão é que aquela mulher loira, de expressão fechada e postura combativa, será a protagonista do longa, mas, rapidamente, seu caminho cruza a imagem de Juliette Binoche, tão conhecida no cinema. Essa relação define também o que acontece na narrativa. Marianne Winckler, a protagonista de Binoche, é uma mulher mais tranquila e passiva, prestando atenção ao que todos dizem e fazem, em uma posição de escuta. Sua vida é um mistério para quem assiste ao filme do francês Emmanuel Carrère por pelo menos trinta minutos. Recém chegada na cidade, Marianne tem um passado oculto, então tanto a pessoa espectadora quanto os personagens que a encontram dependem de seus relatos para construir quem ela é. Divorciada de um homem com alguma condição financeira, com 20 anos em branco no currículo desde a graduação em direito, ela busca recomeçar a vida do zero com um emprego de faxineira e um salário mínimo.
A história de Marianne é cheia de buracos misteriosos que vão deixando dúvidas, no entanto, não é difícil para ela encontrar pessoas que a ajudem nessa nova vida. Outras trabalhadoras e moradores locais em situações financeiras parecidas estão sempre dispostos a estender-lhe a mão, emprestar um carro velho, indicar oportunidades de emprego e serem novas amizades, uma rede de apoio muito empática com sua situação de transição. Embora a mulher esteja sempre abatida e cansada, enfrentando todos os maiores clichês do mercado de trabalho atual para conseguir algo informal pagando pouco, seu semblante é sempre de muita atenção ao mundo em que entrou. Marianne diz tudo como quem pensa a cada frase, é cautelosa nas interações e mantém uma escuta ativa.
Para Entre Dois Mundos, Binoche contracenou com atores não profissionais e isso fica evidente em tela, não por algum amadorismo de seus colegas, mas por como o longa transmite uma aura quase documental. Essa ideia combina perfeitamente com como Marianne se porta, estudando as pessoas ao seu redor. Protagonista e atriz são elementos de fora aprendendo em um novo ambiente, isso porque passado o mistério, entende-se que a faxineira estava de fato adquirindo conhecimento a partir das outras profissionais, amigas e vizinhos locais. O roteiro escrito pelo diretor e por Hélène Devynck é baseado em um livro best-seller de Florence Aubenas, que assim como Marianne é uma jornalista francesa que se passou por faxineira para construir sua obra.
Então, enquanto a protagonista (já revelada à pessoa espectadora) mergulha nesse universo de trabalhadoras exaustas, em jornadas absurdas e com pagamentos mínimos, puramente por interesse como pesquisa para seu livro, Entre Dois Mundos tenta mostrar ao mesmo tempo o embate ético dessa ação, já que Marianne se torna íntima e muito próxima das pessoas a partir de suas mentiras, e a realidade da situação trabalhista atual, com um olhar que beira o documental, observando as jornadas cansativas e caóticas das faxineiras e suas vidas fora do trabalho, pontuando as reflexões com a narração em off de Binoche e sua percepção exterior.
Entre Dois Mundo assume, de certa forma, que não é capaz de captar o ponto de vista das trabalhadoras ou falar por elas, visto que como em sua cena inicial, não é Chrystèle quem conta sua história, mas é a de Marianne que será trabalhada em primeiro lugar. No entanto, é agridoce o distanciamento, quase se isentando de aprofundar uma crítica a tudo aquilo que está sendo exposto. O filme aproveita a condição dos empregos exaustivos daquelas pessoas mais os retratando do que realmente trazendo algum comentário, já que embora a protagonista não dite totalmente a perspectiva do longa (há também distanciamento de sua vida pessoal), ela é o foco principal e é sempre no mesmo prisma de Marianne que a obra se coloca, de aprender, ver, estudar, documentar, não de construir um debate profundo acerca disso. A mulher parece um tanto fria em sua abordagem, mesmo que demonstre sentimentos e preocupações quanto a sua farsa, enquanto Chrystèle e todos os outros ao redor vão sendo cada vez mais afetuosos, caindo em uma enganação. Nem ao menos quem assiste sabe se o que a protagonista diz é verdade ou mentira em certos momentos, sua existência antes e depois dos fatos ilustrados é mantida oculta, tornando a bela atuação de Binoche fundamental para conferir complexidade e profundidade à personagem. A história interessante e a forma genuína como é retratado o acolhimento dos trabalhadores da pequena cidade, elaborando uma noção de coletivo que se ajuda a sobreviver, junto com a entrega de Binoche, são pontos a serem destacados em Entre Dois Mundos. Porém, há no distanciamento do filme e em sua postura uma barreira que não lida totalmente com os temas que levanta.
Existe uma tentativa de isentar sua protagonista, por como outros amigos recebem seu livro e por suas atitudes agradáveis com as colegas, e uma intenção que aumenta o abismo que existe entre Marianne e Chrystèle, não por compreender que existem as barreiras que as separam, a mulher rica da pobre, a escritora de Paris da faxineira da balsa no Canal da Mancha, mas por como o longa se acomoda ao lado da protagonista, aproveitando a amiga como grande efeito narrativo, sem tentar de fato a compreender e mostrar seu lado verdadeiramente.