|Crítica| 'Lilo & Stitch' (2025) - Dir. Dean Fleischer Camp
Crítica por Victor Russo.
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'Lilo & Stitch' / Walt Disney Studios
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A Disney segue seu projeto de infantilização dos adultos a fim de vender sua replicações para todos como se fossem iguais
Há anos as cabines de imprensa (sessões antecipadas dos filmes, teoricamente para críticos e jornalistas) vem deixando de ter o caráter mais profissional, de pessoas indo assistir aos filmes como trabalho e dedicação à profissão, e estão sendo dominadas por fãs (claro que apenas as de filmes mais populares hollywoodianos) que criam páginas no Instagram ou no YouTube apenas para exaltar as obras desses grandes estúdios. São aqueles agentes que as assessorias, distribuidoras e estúdios valorizam muito pela falta de senso crítico, conhecimento e, principalmente, por serem alvos fáceis ao tornarem as suas “análises” apenas divulgações gratuitas das obras. Então, se antes o comum eram jornalistas, vestidos com camisetas e calças discretas, ou, no máximo, uma camiseta indicando a franquia ou filme que iriam assistir, agora o que vemos são pessoas, na casa de seus 30/40 anos, fantasiadas da cabeça aos pés com um macacão de Stitch, enquanto seguram um boneco gigante do mesmo personagem. Esse é um caso real da cabine de imprensa de São Paulo, algo que tem se tornado menos inusitado a cada novo filme da Marvel, remake em live action de animação da Disney ou uma das mil franquias populares que estão retornando às telonas.
Tal questionamento pode soar elitista (no sentido daquela defesa de uma crítica minoritária que detém os meios de comunicação e pensamento, o que já se perdeu há muitos anos, em grande parte para o bem, em menor parte para o mal), mas passa longe de ser esse o objetivo. Se esse caso, nem isolado, nem ainda majoritário nessas sessões, é aqui citado, o porquê está justamente em perceber como os estúdios, e, principalmente, a Disney passam por um processo longo de reconhecimento do público e manipulação dessas pessoas a fim de tornarem fanáticos desprovidos de questionamentos e personalidade, mais fáceis de influenciar do que as crianças (teoricamente o público-alvo do estúdio desde a criação por Walt Disney). Só assim seria possível colocar em prática esse projeto de replicação levado a um novo nível, a massificação na produção de diversos live-action de animações populares, remakes esses que começaram tendo como justificativa (mentirosa, claro) a apresentação desses mundos e histórias para jovens e crianças que não tiveram contato com as obras originais, lançadas desde a década de 1930 e 1940 (como A Branca de Neve e os Sete Anões e Dumbo), passando pelos anos 1960 (Mogli e Ursinho Pooh), até chegar na década que representa a maior dedicação à replicação e nostalgia atualmente, os anos 1990, que gerou os live-action mais bem-sucedidos, financeiramente falando, para o estúdio: A Bela e a Fera, Aladdin e O Rei Leão.
Porém, ao perceber esse público completamente controlado, por que não dobrar a aposta? Assim, cada vez mais a Disney passou a apresentar projetos mais recentes sendo desenvolvidos para o formato com atores, primeiro Lilo & Stitch, que tem pouco mais de 20 anos (ou seja, o ser fantasiado passava longe de ser uma criança quando esse filme foi lançado), depois, e já quase pronto, Moana, que nem 10 anos completou ainda. Claro que essa lógica estimularia outros estúdios a replicá-la, e mês que vem seremos obrigados a ver as salas de cinema não só com esse remake de Lilo & Stitch, mas também com o de Como Treinar o Seu Dragão, mais uma animação que é da década passada, e nem teria tempo para ativar aquela chamada “nostalgia da infância”.
Muito se fala sobre um processo de menosprezo à fantasia, sobretudo da imagem, uma diminuição desse estilo frente a um suposto realismo (bastante questionável inclusive quando vemos filmes como O Rei Leão e Mogli, o primeiro apenas uma animação mais fotorrealista do que o original, enquanto o segundo tem apenas o protagonista não sendo animação), como só importasse o que fosse “real”, mesmo que esse real ainda fosse em sua maioria computação gráfica, ou seja, animação. A discussão é mais profunda, óbvio, se André Bazin lá trás defenderia o cinema alcançando sua plenitude no real (o que, na prática, pouco tem a ver com esses processos atuais), fato é que o realismo da imagem (nos video games, nas animações 3D, no CGI que tenta se esconder etc) é uma busca incessante do capitalismo em geral. Entretanto, esse debate talvez seja um pouco menos relevante em Lilo & Stitch do que já foi em outros remakes em live action de animações da Disney.
Isso porque o público está tão disposto a comprar o mesmo produto repetidas vezes que nem sequer se questiona mais a respeito do que representa dar o seu dinheiro para filmes-produto como esse. Ou seja, esses fãs não percebem como o live-action de Lilo & Stitch, em sua necessidade de referenciar quase literalmente o longa de 2002, está também o desprezando. Talvez mais do que isso, está obrigando esse público, sem perceber, a encarar o original apenas como um objeto a ser replicado com mais valor por ter atores e animações 3D um pouco mais reais. Só que talvez não seja o realismo que atraia essas pessoas e sim a possibilidade de ver algo “novo”, ainda que copiando, para se infantilizar mais uma vez. A desculpa da nostalgia ou da frase muito repetida desde que o trailer foi lançado, “é igual à animação” (sim, as pessoas falavam isso como se fosse algo positivo pelo qual valeria ir ao cinema), nada mais é do que apenas um forma de ser mais criança do que as crianças, mas sem culpa, como se não tivesse nada de errado em agir dessa forma em prol de uma suposta memória afetiva.
Tal problemática não é impertinente ao longa em questão, pelo contrário, Lilo & Stitch (2025) vem para reforçar essas atitudes tão benéficas comercialmente para a Disney (que não lucra apenas com os remakes e sequências, como também com produtos e licenciamentos que vão muito além dos bonecos dessas obras). Mais do que genérico, a obra se aceita apenas no lugar de tentar transpor a animação para o live action, mudando apenas uma ou outra situação, mas mantendo a base, piadas, acontecimentos e diálogos intocados. Se um dia muito se questionou o experimento de Gus Van Sant, ao replicar Psicose plano a plano (só que com cores), hoje se vê com normalidade e entusiasmo a cópia das obras de um mesmo estúdio, que lucra em dobro com um mesmo material-base.
Vai além, essa transposição sofre com um orçamento “mais baixo” (é difícil encarar U$100 milhões como pouco dinheiro, mas certamente é notável o investimento menor desse filme em relação aos seus semelhantes dos últimos anos), revelando o que deveria ser um CGI realista em forma apenas de animação mal acabada (inclusive, toda a sequência inicial parece apenas uma animação qualquer, até o momento em que pessoas começam a aparecer), gerando um ruído gigantesco entre os atores e os diversos cenários em fundo verde ou alienígenas digitais, mas não no estilo lúdico de um Uma Cilada Para Roger Rabbit ou Space Jam, e sim em uma tentativa tacanha de nos fazer acreditar que tudo aquilo pertence a um mesmo espaço, mundo, materialidade e profundidade. Isso pouco importa para o público de adultos infantilizados (que nada tem a ver com os pais que levarão os seus filhos ao cinema), para esses, basta o filme repetir a história e colocar a explicação do significado de Ohana umas quatrocentas vezes em tela.
Não para por aí, na verdade, o processo de infantilização tem seu golpe final e muito mais influente na própria mise en scéne do longa. Se por um lado não tem nada do talentoso Dean Fleischer, que deve ter topado dirigir o longa apenas pela grana boa, já que a obra tem uma cara de fan film, em que quase tudo é filmado em plano-fechado e com diversas montagens para acelerar eventos, por outro, fica muito marcado como a Disney vai muito além da Marvel ao estabelecer essa lógica de piadas sem construção, sendo quase punchline atrás de punchline para esse público específico (porém, cada vez maior) ficar rindo sem perceber o que está realmente vendo, até que encaixa aqui e ali um momento hiperdramatizado, que, nesse caso, nem funciona dentro do próprio filme, e, assim como as piadas, são resultado apenas de uma identificação com a animação. É quase como se não houvesse realmente um estilo, muito menos personalidade, e sim uma decupagem restrita à piadinhas e piscadinhas. Bate saudade de quando esse tipo de filme era mais inofensivo, levado direto para televisão ou locadoras. A Disney conseguiu transformar esses produtos desalmados em filmes extremamente rentáveis, e a construção desse discurso e dos adultos infantilizados vem, ainda que passe despercebido, antes por uma concepção estética.