|Crítica| 'Bolero: A Melodia Eterna' (2025) - Dir. Anne Fontaine
Crítica por Raissa Ferreira.
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'Bolero: A Melodia Eterna' / Mares Filmes
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Em filme nada empolgante, Anne Fontaine é incapaz de emocionar ou de aproveitar o potencial sonoro da história que conta
A cada 15 minutos, alguém no mundo está tocando o Bolero de Ravel. É com essa informação que Anne Fontaine encerra sua interpretação da vida do compositor e pianista francês Maurice Ravel. Ligar o nome à melodia pode não ser tão óbvio, mas é seguro dizer que boa parte do mundo conhece a música e, até por isso, apresentar o protagonista talvez não diga muito, mas a introdução dos créditos, que mostra seu trabalho sendo reproduzido em diversos estilos, é a peça que faz a pessoa espectadora saber exatamente o que está assistindo. Embora a composição mais famosa de Ravel (Raphaël Personnaz) seja o centro do longa, Bolero: A Melodia Eterna é uma cinebiografia bastante comum, que passa por quase toda a sua vida, construindo a imagem do artista e das mulheres que o cercavam.
Ravel era conhecido por sua sutileza, em dado momento um crítico o confronta sobre como suas composições são incapazes de passar emoção. Ironicamente, Fontaine sofre deste mesmo mal com seu filme, estável, mas sem paixão. De certa forma linear e em alguns momentos valendo-se de flashbacks, Bolero: A Melodia Eterna cria sua ideia da história de Ravel, da relação com a mãe e sua presença constante, até o amor platônico por Misia (Doria Tillier), alimentado por anos. Neste mundo masculino de compositores, músicos e maestros, as mulheres são relevantes na vida do protagonista, guiando sua jornada. É uma delas, inclusive, que encomenda o Bolero, a bailarina Ida Rubinstein (Jeanne Balibar) e são tantas outras que cuidam do homem até a sua morte.
A obra retrata Ravel cheio de peculiaridades, havia certa obsessão por seus sapatos, não tinha relações físicas e sexuais com mulheres, mas tocava piano nos bordéis e pedia para que as trabalhadoras de lá vestissem as luvas vermelhas de Misia, escutava música em todos os lugares e dizia que as composições vinham até ele, até o assombravam. Assim, há alguns pequenos chamados do Bolero ao longo do filme, até que ele finalmente seja tocado. A questão é que, para um artista com tantas questões, o filme é sempre muito plano com as emoções, sua relação com a música é tão estéril quanto sua vida sexual. Sua perturbação ao criar uma grande obra, tão reconhecida, mas que ele mesmo despreza, é apresentada com a mesma potência de seus momentos silenciosos enquanto espera a memória o deixar.
Não há personalidade em como a história de Ravel é contada, mas, pior do que isso, é como o trabalho de som pouco faz para que o Bolero seja destacado na obra. Já sabe-se desde a introdução que a construção do filme é voltada a uma melodia extremamente conhecida, portanto, espera-se muito de sua primeira apresentação. É claro que quando Ravel começa à compor no piano, o som não precisaria ser dos mais grandiosos, mas ao menos na Ópera, quando a peça é regida, não faz sentido como a música se mistura ao ambiente sem a menor presença. O volume das vozes é quase o mesmo, por vezes até supera a orquestra para que um diálogo seja escutado. Passa-se algum tempo do ensaio e mesmo quando o balé tem sua estreia, o trabalho sonoro não faz o suficiente para que o Bolero tenha potência em tela e preencha o filme. Algumas apresentações ao vivo no youtube são mais impactantes.
A persistência da música é uma ode à modernidade, imaginada em 1928, mas que ultrapassa seu tempo, pensada a partir da repetição mecânica. O Ravel do filme até indica uma fábrica como o cenário ideal do balé, mas é ignorado por Ida, que enxerga só o potencial erótico da obra. Como pudera um homem que apenas amou platonicamente, sem tocar ou beijar quem queria, realizar uma composição tão sedutora? Essa relação complexa, entre criador e criatura, pouco é tensionada na narrativa em favor de seu potencial, seguindo o mesmo padrão.
Então, com a fotografia comum do filme de época francês, atuações mais sóbrias, narrativa simples de cinebiografia e um som que não aproveita o que possui para impactar quem assiste, Bolero: A Melodia Eterna é incapaz de emocionar. Já no fim de Ravel, Fontaine subitamente se lembra que como cineasta pode contar histórias da forma como bem entender e resolve aproveitar seus dez minutos finais para algo minimamente empolgante. Primeiro as cores se perdem e a câmera parece se libertar junto da alma do compositor, depois um fundo branco (para combinar com a falta de vida do resto do filme) é ambiente da orquestra espiritual de Ravel, em que ele rege o Bolero com músicos vestidos de preto, enquanto um bailarino contemporâneo dança entre eles e, por vezes, sozinho no fundo claro.
É absurdo que a diretora só consiga nestes minutos finais expressar a ideia que Ravel tinha sobre o Bolero e que falou brevemente, sem muito alarde, durante o longa. O balé contemporâneo com um bailarino dos dias de hoje, interpreta os sons tocados do além pelo compositor sempre sutil e sóbrio. Sua criação, a qual ele nunca deu o devido valor, se torna maior que sua figura, e só nesses momentos finais de liberdade, Bolero: A Melodia Eterna eleva um pouco o som, convidando a pessoa espectadora a conviver com essa melodia presa em sua cabeça por alguns dias. Mesmo assim, há muito potencial não atingido, sonoramente e narrativamente, que faça jus a algo tão relevante há quase 100 anos.