|Crítica| 'Salão de Baile: This is Ballroom' (2024) - Dir. Juru e Vitã
Crítica por Victor Russo.
'Salão de Baile: This is Ballroom' / Retrato Filmes
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Juru e Vitã reencenam e recontextualizam as preconcepções sobre as ballroom, partindo do conhecer por dentro e usando entrevistas como expansão do olhar
Mais de 30 anos depois de Paris Is Burning e seis após o início da série Pose, da Netflix e que retrata período e ambiente semelhantes ao do documentário novaiorquino, Juru e Vitã adentram o mundo das Balls com a consciência do imaginário construído sobre aqueles espaços e pessoas, entendendo como o longa da década de 1990 é um referencial sobre o assunto. A partir daí, o trabalho é muito mais de recontextualização para encontrar uma nova voz do que simplesmente de transposição. Não é o Paris Is Burning brasileiro, é o Salão de Baile mesmo. A referência é igualmente exaltada e rejeitada já no início, quando, como um anseio maneirista, a dupla de cineastas reencena o documentário americano com certa descontração e exagero, se apropriando de um didatismo necessário ao propósito de apresentação da cena para todo um público que não conhece aquele universo particular, que era até o objetivo maior do filme estadunidense, mas se desenvolvendo de forma bastante contrária. Ainda que os objetivos sejam semelhantes, os caminhos percorridos são bastante opostos.
Assim, se Paris is Burning tinha nas entrevistas e no ouvir aquelas pessoas seu ponto de sustentação, Salão de Baile se utiliza de tal artifício como complemento e expansão, como um ouvir vozes presentes naquela, suas diferentes histórias, o papel de acolhimento de cada uma das houses e o próprio entendimento da cada uma das categorias a serem performadas na ballroom. Só que, se essas declarações abrem o longa é porque o interesse da narrativa está justamente na aproximação pela vivência, na seleção não das balls como uma forma apenas de ilustrar como aquele mundo funciona e dar imagem às falas, mas, pelo contrário, de nos atirar para dentro de um evento específico, uma ball que vai ter sua imprevisível história contada. A graça do longa está justamente nesse lugar, de cada competição sendo exibida, as fases sendo passadas e os grandes prêmios entregues, como se realmente presenciássemos tudo aquilo, dando-nos o direito de não apenas conhecer, mas, inclusive, torcer. Ao inverter essa lógica de interesse narrativo, o que Juru e Vitã estão fazendo é também entender que histórias são contadas não só por falas, como também (e principalmente, neste caso) por performances. A percepção da expressão artística como uma completude meio incerta do ser, a liberação do que sabe e o que sente naquele momento, o resultado de um trabalho físico e psicológico que dá a liberdade do agora, do improviso, ao consciente e programado.
As entrevistas, então, transformam-se em recortes, em olhares e vivências, inclusive percebendo as pessoas para além das poses, vogues, batekoos e todos os deslumbrantes, complexos e diversificados figurinos, maquiagens e penteados. O andar na rua, o não ser aceita por seus familiares, o trabalho que às vezes paga as contas para poder realmente viver dentro das balls, as histórias de prostituição ou incertezas do passado. Se estabelece nessas declarações uma rica gama de histórias diferentes, de personalidade distintas, além de compreender em cada uma dessas vozes e visões esses sentimentos e percepções muitas vezes ambíguos em relação às balls, as desavenças, os preconceitos ainda muito presentes, os conflitos geracionais etc, ao mesmo tempo em que é aquele lugar de acolhimento, pertencimento e permissão, para ser quem deseja e se expressar.
Todo esse panorama se amplia a partir de um processo de montagem que se mantém fiel à ideia de ter aquela ball específica como o cerne, o interesse no menor, naquele momento, ao mesmo tempo em que tem de se transformar no processo o tempo todo, já que a realidade é bela, mas não se completa enquanto arte no sentido de ter uma narrativa bem elaborada, com conflitos e ápices dramáticos. O batekoo ao final cria esse momento apoteótico, assim como a briga que cria um clímax e contraponto dentro do evento. Juru e Vitã, acima de tudo, sabem trabalhar com a realidade e manuseá-la a fim de, como todes presentes naquela ball, criar uma narrativa a partir da arte, moldando o real a fim de amplificar sensações e visões.