Português (Brasil)

|Crítica| 'Piano de Família' (2024) - Dir. Malcolm Washington

|Crítica| 'Piano de Família' (2024) - Dir. Malcolm Washington

Crítica por Victor Russo.

Compartilhe este conteúdo:

 

'Piano de Família' / Netflix

 

Título Original: The Piano Lesson (EUA)
Ano: 2024
Diretor:  Malcolm Washington
Elenco: John David Washington, Danielle Deadwyler, Samuel L. Jackson, Ray Fisher, Michael Potts e Corey Hawkins.
Duração: 127 min.
Nota: 2,0/5,0
 

Primeiro longa de Malcolm Washington tem vergonha do terror e do cinema, e escolhe ser mais uma adaptação super teatral para Oscar de uma peça de August Wilson

Piano de Família é uma daquelas obras em que, caso você não saiba qual é o material base, em menos de 10 minutos já há uma certeza de que se trata de uma adaptação do teatro. É a terceira peça de August Wilson levada para as telonas (teoricamente, já que duas, sendo esta uma delas, são da Netflix e só ganharam a tela grande em festivais) em menos de 10 anos, todas em um período muito específico de festivais de final de ano e estreia limitada nos Estados Unidos entre dezembro e janeiro, com o claro objetivo de buscar indicações ao Oscar. Se Um Limite Entre Nós assumia de forma mais clara essa recusa ao cinema, delimitando o cenário com a cerca inclusive, e conseguia tirar alguma potência dramática disso, e A Voz Suprema dos Blues já tinha toda uma afetação e foco em monólogos, mas pelo menos com um ou outro interesse cinematográfico no trato das músicas e dos cenários, o longa de Malcolm Washington, que provavelmente será o único dos três a não chegar na sonhada premiação, é o mais frustrante por ter claramente um diferencial no terror, em que o filme funciona quando vai para esse caminho, a mise en scéne e os símbolos ganham sentido, mas há uma vergonha ou um medo da direção de assumir esse gênero. É como se a recusa do Oscar pelo terror fizesse Washington trilhar a estrada mais convencional da manutenção do teatral.

Dessa forma, o filme se resume a grandes atores, como John David Washington, Danielle Deadwyler e Samuel L. Jackson, erguendo a voz e carregando o sotaque para discutir sobre o que deve ser feito com aquele piano. O filme não se desenvolve, os personagens não saem do lugar (no caso do de Jackson, quase literalmente, já que ele permanece sempre sentado de canto, aparecendo apenas para contar uma história ou fazer algum apontamento rápido) e há uma dificuldade extrema da direção em decupar o simples, uma geografia clara de personagens plantados no mesmo espaço. O uso de planos aproximados para buscar alguma emoção mais aflorada vem seguido de cortes entre personagens que confundem constantemente um simples quem está olhando e falando com quem, já que ele não consegue criar básicos “eye-matching” (quando corta de um plano para o outro e se gera a sensação de que o personagem do plano A está olhando para o do Plano B, e o do Plano B devolvendo esse olhar).

Entretanto, esse apelo à dramaturgia, que marca muito um Oscar bait histórico, mas cada vez menos reconhecido pela premiação, e o foco apenas em texto e atuações expansivas e gritadas, marca também de um teatro bem específico e com a cara das peças de Wilson, não inibem (Malcolm) Washington de uma pretensão meio tola de “fazer cinema”. Uma tolice que parte da inexperiência, de achar que em meio a um filme preso ao teatro, se ele fizer dois chicotes aleatórios (panorâmica muito rápida passando de um personagem ao outro sem percebermos claramente o que há entre eles), balançar a câmera ou se movimentar pelo espaço com ela acompanhando os personagens em seus discursos seria o suficiente para ser declarado como um cinema mais autoral. Claramente não é, só reforça esse caráter do filme de não querer ser teatro, mas não conseguir deixar de sê-lo em grande medida por conta dessa obsessão com a dramaturgia de Oscar.

O mais frustrante é mesmo perceber que o próprio Washington reconhece que o potencial está todo no terror, a ponto de focar seu clímax de menos de 10 minutos mergulhando no gênero e extraindo o único momento vivido em cinema e significação. O fantasma como a herança da escravidão que segue assombrando os personagens negros, o piano marcado (literalmente) pelas raízes daquela família, mas que sempre que se abre é atormentado por esse latifundiário escravista que até depois da morte recusa humanidade àquelas pessoas. Tudo funciona nesse lugar mais sombrio, a mise en scéne se modifica, tendo seu ápice dramático em uma montagem cortando a luta física e impossível contra aquela assombração e a música como chamado a uma união aos que já foram para vencer aquele mal que ainda permanece. O plano aproximado que revela a potência da personagem sendo cercada por aquelas que atendem o chamado ganha um força em discurso, imagem e história. Esse parece ser o filme que Washington queria contar, é uma pena que ele não consiga se desapegar da obra que está adaptando e dessa forma de fazer cinema que lhe foi praticamente autoimposto por décadas e décadas de filmes feitos sob encomenda para o Oscar.

Compartilhe este conteúdo: