|Crítica| 'Retrato de um Certo Oriente' (2024) - Dir. Marcelo Gomes
Crítica por Victor Russo.
'Retrato de um Certo Oriente' / O2 Play
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A novela das nove encontra uma fotografia cuidadosa que pensa cada plano como um retrato a ser eternizado
Novo filme de Marcelo Gomes, inspirado na obra de Milton Hatoum, olha para a imigração libanesa (e não só ela) para o Brasil no começo do século XX, deixando para trás a Guerra em busca do sonho de uma vida melhor, mas mantendo as feridas e rivalidades religiosas em aberto, como uma lembrança cultural nunca perdida. Emilie (Wafa’a Celine Halawi) parte de navio com o irmão Emir (Zakaria Kaakour), que entra às escondidas (o que nunca realmente vira uma questão na trama), e se apaixona por Omar (Charbel Kamel), também árabe, só que mulçumano, diferente dos irmãos cristãos (religião dominante entre os que migraram do Líbano para o Brasil no período). O triângulo que se cria a partir daí e que só existe por conta do ciúmes e preconceito de Emir, é bem típico de uma novela das nove, sobretudo por como o irmão surge como essa figura vilanizada, que espreita para destruir a tranquilidade dos apaixonados. Até a interpretação de Kaakour vai nessa linha menos naturalista, destoando um tanto do restante do longa, que cria uma atmosfera doce, meditativa e gostosa de permanecer naquelas imagens.
Entretanto, se todo o roteiro segue um conceito mais básico e novelesco de vilania e amor, preconceito e bondade, Retrato de um Certo Oriente vai funcionar justamente por conta do seu tratamento da imagem, uma cinematografia que parece um álbum de fotos, com um preto e branco bem trabalhado, cheio de contrastes e jogos com o foco. O que poderia ser apenas um virtuosismo destoante, aqui ganha novos contornos, primeiro por como essas imagens se desenvolvem em um ritmo bastante específico, que permite à narrativa ser sobre essa espera da viagem demorada e, ao mesmo tempo, sobre a incerteza do que virá a seguir. Só que, principalmente, a fotografia que se impõe sobre a obra responde a um cuidado que vai além do estético e do sensorial, ela se transforma no filme em si.
Se o cinema é por essência e primordialmente imagens colocadas lado a lado em movimento a ponto de nos fazer não perceber que o movimento não existe realmente, mas é um truque pela quantidade de quadros tirados por segundo, Gomes entende o poder dessa arte de eternizar imagens e se impor como uma memória viva, uma espécie de ideal de realidade frente à câmera que registra momentos, mas vai além, consegue extrair sensações, contar histórias, deixar recordações para gerações seguintes e perceber todo um mundo novo que vai se apresentando, como a chegada dos personagens à Amazônia, o desconhecido que ganha tons de mistério por essa lente e pelas cores retiradas, o que não impede as imagens de esbanjarem contrastes, já que é um preto e branco de muitos tons, do branco ao preto, passando por muitos cinzas que conduzem essa viagem.
Assim, Gomes parece não ter uma grande pretensão em falar exatamente sobre as Guerras ou sobre a religião, mas de recordar e eternizar o resultado delas, assim como exaltar esses aventureiros que se permitiram encontrar o amor no desconhecido preto e branco de um país que nem sabiam onde ficava. E, ainda que a trama envolvendo o irmão seja bastante novelesca, o cineasta consegue extrair muita beleza entre as relações que Emilie faz pelo caminho, os aprendizados, como a nova língua ou montar uma rede para dormir, que não soam pesarosos, e, sim, parte dessa jornada autoimposta que aos poucos ganha um contorno de sonho e até otimismo. É o potencial do cinema em ser belo e profundo emocionalmente pela imagem, não desprezando os personagens, mas percebendo que a imagem em movimento é capaz de contar histórias simples, mas dignas de ganhar as telonas.