Português (Brasil)

|Crítica Mostra 2024| 'Os Enforcados' (2024) - Dir. Fernando Coimbra

|Crítica Mostra 2024| 'Os Enforcados' (2024) - Dir. Fernando Coimbra

Crítica por Victor Russo.

Compartilhe este conteúdo:

 

'Os Enforcados' / Mostra SP

 

Título Original: Os Enforcados (Brasil)
Ano: 2024
Diretor: Fernando Coimbra
Elenco: Irandhir Santos, Leandra Leal, Irene Ravache, Stepan Nercessian, Thiago Thomé e Ernani Moraes.
Duração: 123 min.
Nota: 4,0/5,0
 

Fernando Coimbra resgata uma tradição setentista do cinema brasileiro e faz da sua farsa de crime um convite ao prazer sem precisar dizer algo, mas representando o nosso país como poucos

Vivemos um período do cinema, tanto no Brasil, quanto no resto do mundo, que busca responder a uma prática estimulada pelos algoritmos de redes sociais, o fechamento das pessoas em bolhas ideologicamente calorosas, mas que, muitas vezes, são apropriadas pelo capitalismo e transformadas em público-alvo para a compra de produtos e discursos. Os filmes respondem a essa dinâmica de maneira quase involuntária e, sem perceber, compram uma estética dos mercados dominantes, sobretudo o americano e o europeu. Apesar de distintos cinemas partirem desses mais variados países, o prazer em assistir a um filme é algo cada vez mais secundário frente a racionalização, uma autoimposição dos cineastas em antes de pensar como decupar uma cena ou compor um plano, antes de planejar fazer o público rir, chorar ou se desesperar, o objetivo é sempre “dizer algo socialmente relevante”. A arte que traz consigo todas as outras anteriores e, com isso, uma possibilidade infinita de criação e estímulos, transformou-se em um mero aparato para se cuspir temas. Se anteriormente cineastas vanguardistas como Chantal Akerman ou Spike Lee pensavam na estética como a maneira mais poderosa de provocar ou comentar sobre a sociedade, hoje os cineastas parecem cada vez menos interessados no poder dos sons e das imagens, basta ser claro no discurso e agradar aqueles que concordam com o seu pensamento. A criatividade e os gêneros vão morrendo, sobram obras repetidas com a mesma fotografia, os mesmos enquadramentos e, acima de tudo, um apelo à sobriedade, a um certo naturalismo que historicamente foi dominante em Hollywood e teve uma presença ainda maior a partir da década passada.  Assim, o que muitos cineastas parecem não perceber é que pensam estar fazendo uma arte elevada ao inserir frases prontas, esconder na imagem o que pode ser controverso e mantendo uma seriedade que o “tema pede”, mas, no final, apenas estão enfraquecendo o potencial de comentar a partir do prazer em fazer cinema e fazer o espectador sentir antes de refletir. Estão tornando os seus filmes esquecíveis em tempo recorde.

Fernando Coimbra dá então um respiro, um grito de liberdade ao cinema sensorial, sem amarras e que entende a potência de fazer filmes a partir de uma estética nacional. O que os diretores de tema não percebem é que quase sempre estão apenas reforçando uma forma de consumo que interessa aos países mais desenvolvidos, formando um público para esperar isso. Essa nunca foi a tradição do cinema brasileiro, marcado pelas chanchadas e novelas, e atingindo o seu ápice com o Cinema Novo e o Marginal, tendo nas ponochanchadas o momento em que o público mais frequentou as salas de cinema. É um país de filmes gritados, muitas vezes sujos, violentos e repletos de putaria e palavrão. Já passou da hora de deixar o realismo metido a sombrio PG-13 para Hollywood e passar a moldar o nosso público pelas nossas tradições, não as que eles nos impuseram. Coimbra entende de onde o nosso cinema veio, quem é o nosso povo e como agimos no dia a dia, não nos debates pseudo intelectuais das redes sociais. Percebe o potencial de criar um Brasil farsesco, violento e cômico, desesperado por fazer dinheiro em um sistema que não nos beneficia e, mesmo aqueles que detém poder econômico seguem tendo essa síndrome de buscar sempre mais, principalmente quando não são nascidos em berço de ouro.

Assim, se Rainha Diaba, Amuleto de Ogum e tantas outras obras de crime dos anos 1970 tinham esses personagens meio caricatos, que falavam gritando e geravam graça pelo exagero do agir, mas permaneciam em um Brasil das bases, do pequeno poder aquisitivo e das disputas em menor escala, Os Enforcados ri do filme de máfia americano sob uma ótica ainda mais complexa e brasileira. O jogo do bicho, ou a contravenção como eles chamam, está nesse lugar nebuloso e extremamente carioca de pessoas enriquecendo de forma ilícita, ao custo dos vícios da população, ao mesmo tempo que passam longe de representarem uma elite. São pessoas com dinheiro que comandam o carnaval, que estão no meio do povo e não têm medo de sujar as mãos. Coimbra também não tem medo de sujar as mãos na sua narrativa dos bobos da corte que quiseram ser rei, sua tragédia shakespeariana que preferiu ser farsa carioca. O filme transpira apreensão, ri de nervoso a cada resposta inesperada de Valério (Irandhir Santos), Regina (Leandra Leal) e, principalmente, sua mãe (Irene Ravache), e vai a fundo na violência como algo banal entre essas pessoas.

Só que, ao fazê-lo, Coimbra está criando um recorte muito mais brasileiro do que a maioria das obras brasileiras atuais, sem nenhuma pretensão em dizer algo ou criar simbolismos. O corpo escondido na parede, a obra que não acaba ou as disputas de poder não precisam ser mais do que isso, não se intimidam em serem tratadas como arte menor só por fazer rir da violência ou do desespero da comédia de erros. Nesse processo muito mais sensorial, em que nem o crime e os poderosos são realmente julgados ou pauta para discussões, ficando apenas na posição dessas figuras caricatas e divertidas de acompanhar, Coimbra faz muito mais cinema do que a maioria dos cineastas atuais, como muitos diretores setentistas, das pornochanchadas e filmes de crime, ele pensa em decupagem, pensa em composição, sabe quando ficar fora do quarto e escutar apenas a briga lá dentro, mantendo a expectativa da personagem que espera a resposta, ao mesmo tempo que sabe quando abrir o plano e mostrar aquela casa gigantesca em um grande plano geral, para revelar Valério chegando com a arma na mão e acirrando o conflito que já havia fugido de controle na cozinha. É um cinema que grita, que nos faz rir das suas personagens, mas que, acima de tudo, sabe do potencial sensorial de uma boa seleção de sons e imagens, sentidos que estamos perdendo no cinema contemporâneo.

Compartilhe este conteúdo: