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|Crítica Mostra 2024| 'Mambembe' (2024) - Dir. Fabio Meira

|Crítica Mostra 2024| 'Mambembe' (2024) - Dir. Fabio Meira

Crítica po Victor Russo.

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'Mambembe' / Roseira Filmes

 

Título Original: Mambembe (Brasil)
Ano: 2024
Diretor: Fabio Meira
Elenco: Índia Morena, Madona Show, Murilo Grossi e Dandara Ohana.
Duração: 97 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Projeto pessoal e poético de Fabio Meira inverte a lógica cinematográfica habitual do real e da ficção

Se Maya Deren um dia defendeu o cinema como o uso criativo da realidade e André Bazin desejava que essa arte fosse o real frente a câmera, o que ambos teóricos diziam era sobre a possibilidade do cinema em ser uma arte que trabalha com o real, com esse aparato que capta o que está diante dele. No processo, se diferenciavam, Bazin se mantinha fiel a essa utopia, reconhecida por ele mesmo como impossível, de ser a arte do real, enquanto Deren percebia que a partir do que a câmera é capaz de captar, seria possível manipular essa realidade para diversos fins e sensações, era a favor do cineasta como alguém capaz de jogar com essas possibilidades e trucagens. Apesar de opostos em algum sentido, o que ambos e tantos outros teóricos estão de acordo é na capacidade do cinema em trabalhar com o real, seja cru ou manipulado pelos artifícios que essa arte permite. Ou seja, o ficcional vindo a partir do real, seja em uma obra realista, em um documentário, em um filme baseado em fatos reais ou em qualquer filme de gênero.

Fabio Meira inverte essa lógica a partir do momento que o seu documentário parte de uma base ficcional, do filme sobre três mulheres no circo com o título Mambembe, que se mantém no longa, e passa a procurar figuras que se encaixem no seu roteiro ainda um tanto inacabado. Assim, ele não ficcionaliza inicialmente a partir da realidade, mas o contrário, busca na realidade uma forma de tornar sua ficção possível. Essas três mulheres que ele procura só existem no papel, é necessário toda uma jornada para encontrar àquelas que o cineasta perceba que mais se assemelham ao pensado inicialmente. Mas, claro, no processo, adaptações são feitas, já que o real não responde integral e deliberadamente à ficção. Algumas não são permitidas ou não se permitem participar e a busca continua até que Meira se dê por satisfeito com o seu trio. Nesse processo, ele se faz presente com a maior humildade do mundo, empresta sua voz, sua câmera e, às vezes, a sua imagem de corpo inteiro. 

O filme vai se transformando, vai deixando de ser o documentário sobre o longa que desejava fazer, e vira essa obra ganhando vida do papel, mas não por completo, não sem intervenções. As personagens vivem a si mesmas em uma versão ficcional que entrega o eu real, mesmo que o background tenha algum floreio, Meira não esconde o processo de fazer a obra, seja entrevistando as mulheres reais, seja mostrando a claquete antes de repetir um simples take diversas vezes. O caminho seguido é o de não ter mais um limite entre o real e a ficção, tudo se torna encenado, mesmo sem sê-lo. É um filme de conexões, de reflexões, mas, sobretudo, de amor pelo processo. Se o diretor um dia almejou fazer um longa ficcional sobre aquelas mulheres criadas, esse filme deixou de existir. Não há uma narrativa contínua, apenas cenas daquele roteiro inicial, intercaladas a uma consciência do real. E mesmo no mais documental, o real é muitas vezes entreposto pelos devaneios de Meira. Há uma beleza nessa obstinação, no ter uma ideia, querer fazer, mas ir se deixando levar por aquilo que cada momento, cada vivência, cada personagem é capaz de proporcionar. O diretor se mostra aberto e interessado, conserva Ruy, o que seria uma homenagem ao seu pai e ao amor de ambos pela estrada e por conhecer diversos brasis, como essa figura da ficção, ao mesmo tempo que se entrega a escutar aquelas mulheres, seja em entrevistas ou mesmo em como as encena nas cenas de ficção. Mesmo Ruy não se resume a ser Ruy, e Murilo Grossi, o ator que o interpreta, tem a permissibilidade da montagem em aparecer fora do personagem, encarando aquilo como um trabalho e questionando firmemente o diretor. 

Mambembe se revela então como uma bela obra aberta, de muitas ideias e experimentações, sem demarcar exatamente a ficção, sua origem, ou a realidade, seu processo cinematográfico inicial diante das câmeras. A beleza está justamente em como Meira se mostra apaixonado por se deixar levar pelo fluxo criativo que proporciona em conjunto com todos ali presentes e também os que ficaram pelo caminho. O retorno àquelas personagens anos depois é quase como uma volta a um sentimento que não quer deixar de existir, um filme que quer continuar ganhando vida e se transformando.
 

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