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|Crítica| 'Continente' (2024) - Dir. Davi Pretto

|Crítica| 'Continente' (2024) - Dir. Davi Pretto

Crítica por Victor Russo.

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'Continente' / Vitrine Filmes

 

Título Original: Continente (Brasil)
Ano: 2024
Diretor: Davi Pretto
Elenco: Olívia Torres, Ana Flavia Cavalcanti, Corentin Fila, Breno de Filippo e Silvia Duarte.
Duração: 115 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Davi Pretto busca referência em Claire Denis para mirar na manutenção e herança de uma dinâmica escravista e da sociedade construída pelo sangue dos acordos que rejeitam uma revolução de classes

Continente parte de um lugar bastante comum no terror contemporâneo, da recusa do horror e seus elementos mais viscerais para dar lugar a um afastamento, vendo aquelas personagens caminhando pelos espaços, buscando nos planos detalhes, como das cicatrizes, e em diálogos criar um mistério e possíveis símbolos, mas sem adentrar inicialmente aqueles corpos e violá-los. Nesse sentido, parte da narrativa do que retorna de fora, da cidade grande, para o campo, e é confrontado pelos trabalhadores locais, o longa lembra outros dois recentes brasileiros, exibidos na Mostra de São Paulo de 2022 e que tomam rumos bem distintos. Primeiro, Fogaréu, filme que nunca sai desse lugar sugestivo, que se contenta em ser um filme de muitos discursos contra a extrema-direita e de tornar patéticas essas figuras estereotipadas e perigosas, mas nunca adentra os códigos do gênero. Segundo, Propriedade, longa que complexifica o debate das lutas de classes e se atira desde o início no thriller, sem medo de se arriscar. Continente sai de Fogaréu em direção a Propriedade, mas se desvia no caminho para uma referência muito mais distante geográfica e temporalmente: Desejo e Obsessão, de Claire Denis.

Então, se Denis tinha no cinema do corpo o seu interesse já imediato, tornando visceral os prazeres, desejos e fetiches, mas sem nunca ter uma grande preocupação em traçar um recorte social, Pretto constrói em suas sugestões e olhar que vai mudando de pontos de vista, começando com o protagonismo de Amanda (Olivia Torres), a que chega, e que poderia facilmente cair no lugar de civilização x barbárie se a mantivesse como um ser ilibado e que veio da França (por coincidência ou não o local do filme de Denis), com um conhecimento superior de classes para confrontar aqueles que vivem suas vidas pela e para a terra, mas depois vai encontrar em cada uma dessas personalidades um lugar de Brasil e suas contradições. A médica Helô (Ana Flavia Cavalcanti) é a que mais estimula uma luta de classes, aos moldes de Propriedade, mas não resiste às tentações da carne e, principalmente, é proibida pelo estado que o cerca de dar aos seus mais próximos a pílula mágica da libertação. Os que trabalharam toda a vida mais próximos do pai de Amanda são agentes da contrarrevolução, confortáveis na posição de subordinados e incapazes de enxergar possibilidades para além do que sempre foi posto a eles. Os demais trabalhadores explorados não conseguem pensar em revolução, já que antes precisam se alimentar e suprir suas necessidades.

Assim, Pretto parte dessa dúvida gritante no ar sobre o que acontece naquele lugar, pelos olhos de Amanda e seu namorado, que desconhecem a dinâmica local, mas, a partir do momento em que a suposta protagonista entende e passa a buscar o seu posto, primeiro como herdeira que detém o poder sobre esses trabalhadores quase como seus escravos, segundo como uma mulher ocupando esse espaço e agindo contra quem tenta manter uma visão mais patriarcal, o filme se liberta da amarra do terror contemporâneo de tema e simbolismos e se atira no corpo sangrando, na saciedade dos desejos mais primitivos, no acordo como uma forma de manter a relação das classes impedindo a tomada de poder  por aqueles que são explorados. Ao fazê-lo, até na música e nos planos, como Amanda vestida de branco, toda ensanguentada na noite e a casa pegando fogo, Pretto revela sua referência, se entrega ao cinema de Denis e a Desejo e Obsessão, só que não apenas como citação ou homenagem, e, sim, ressignificando esses símbolos, trazendo a imagem para um contexto brasileiro, transformando a sede por sangue não em um fetiche ou mero desejo, mas na representação de uma sociedade construída a partir de pobres e trabalhadores, de seus esforços e corpos, da violência de classes que se perpetua com acordos que só favorecem aqueles que detém o poder financeiro e ludibriam contra revoluções que modifiquem esse cenário. Denis adentra o agro brasileiro, mas Pretto não olha com elitismo, olha como um brasileiro que reconhece as contradições presentes nessa herança que vem do colonialismo e da escravidão. Mais do que isso, Pretto percebe que o cinema não é apenas uma plataforma para temas, não é uma thread de Twitter representada por atores. É uma arte que extrai os discursos mais marcantes quando consegue adentrar os códigos mais sensoriais dos gêneros.

 

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