|Crítica Mostra 2024| 'Marcello Mio' (2024) - Dir. Christophe Honoré
Crítica por Victor Russo.
'Marcello Mio' / Imovision
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Christophe Honoré volta a olhar para o peso do pai falecido, ressignificando tudo em uma comédia existencialista metalinguística que pouco consegue imaginar para além das piscadinhas a quem conhece aquelas figuras
É inegável a importância do cinema francês para a linguagem cinematográfica, desde a origem dessa arte, da visão mais industrial desse novo produto pelos irmãos Lumiére às invencionices do ilusionista George Mélies que vê na câmera, na película e na montagem uma nova forma de criar por meio das diversas possibilidades que esses aparatos, ainda bastante rudimentares na época, eram capazes de proporcionar, do impressionismo, passando por Robert Bresson e Jean Renoir à Nouvelle Vague que instigou novas ondas pelo mundo. De lá para cá, o cinema francês sempre esteve em uma posição de destaque, com diversas vertentes e relevância nos mais variados gêneros. Só que, justamente por estar posicionado quase como um espaço da criação artística, visto como uma antítese da máquina hollywoodiana, além de ter em Cannes o maior festival do mundo, pouco se comenta do quanto há também um cinema mais inofensivo, formalmente falando, que bebe de uma comédia mais existencial, como um descendente distante e inferior da Nouvelle Vague, que pouco arrisca em linguagem, só que se mantém confortável o suficiente se replicando e recebendo um espaço meio indevido, facilitado justamente pela dominância francesa em Cannes. Marcello Mio se enquadra bastante nesse filme que ganha o destaque de participar da competição desse Festival apenas pelo seu país de produção (e um pouco pela figura homenageada).
Não que o filme seja um desastre, longe disso, Honoré é um diretor competente o suficiente para criar uma mise en scene minimamente complexa, utilizando-se muito aqui de espelhos e reflexos para reforçar essa ambiguidade psicanalítica da protagonista. Mas é um filme que emperra muito em suas premissas, que precisa de muito para fazer e propor muito pouco, tendo como resultado final esse típico filme francês meio água com açúcar divertidinho e esquecível. Mais do que isso, dá a impressão de ser uma obra muito mais divertida no set de filmagem do que o resultado final em tela. Então, o longa vai ter como premissa a crise existencial de Chiara Mastroianni, filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve, compartilhando a profissão com os pais, mas sentindo o peso dos monumentos cinematográficos que esse casal internacional compõem. Assim, ela se vê no espelho e enxerga o falecido pai, passando, aos poucos, a partir de então, a assumir essa identidade, que gera reações perplexas, condescendentes e revoltadas daqueles que estão em seu entorno, obrigando-os a reagir a situação sem nunca saber exatamente o quanto de realidade e o quanto de brincadeira há nas ações de Chiara.
Honoré assume então a ficcionalização de figuras e símbolos reais, todos vivem a si mesmos, criando essas interações roteirizadas, mas que teoricamente seriam reais (nunca passa perto disso, nem é muito a pretensão da encenação). Tudo vira uma grande odisseia de momentos, uma narrativa fragmentada que busca teoricamente construir essa jornada interior de Chiara, não no sentido de sua sexualidade ou identidade de gênero, mas mais em um lugar meio freudiano, ao mesmo tempo que reencena momentos famosos de Marcello e de filmes que ele protagonizou. É o caso do longa que depende de um conhecimento prévio de seu espectador, tanto cinematográfico quanto das próprias relações parentais, amorosas e de trabalho entre os envolvidos. Isso passa longe de ser o problema, até por se tratar de uma homenagem, mas também não é muito uma solução. O que fragiliza toda a abordagem de Honoré é justamente esse contentamento com a premissa, não há uma proposição de evolução de Chiara para além de algumas lembranças da infância, a comédia emperra em uma certa obviedade das situações inusitadas, como Chiara como Marcello em um programa da TV Rai meio sensacionalista, e, acima de tudo isso, esse esvaziamento das referências, a justificativa da homenagem como razão inicial e final de existência, fazendo de tudo que envolve Marcello e o seu cinema meras piscadinhas, como um “pegou essa?” para os cinéfilos. Não há nada muito além, ficando preso até em uma indecisão ambígua de discurso, já que, o longa que tanto almeja ser sobre Chiara, da brincadeira à profundidade emocional provocada pelo peso de seus pais nela, no final, parece muito mais interessado na figura de Marcello e a homenagem ao seu centenário.