|Colunas| Coluna Coágulo #001 - Por Tati Regis
Tati Regis escreve mensalmente sobre o cinema de horror na coluna Coágulo.
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"O Terror é Plural: Formas, Reações e Reflexões"
Por Tati Regis
Faz algum tempo que venho refletindo, na maioria das vezes de forma solitária, sobre certas reações que surgem quando um filme de terror é lançado, especialmente aqueles que fogem das convenções tradicionais do gênero. Algo que me incomoda bastante são comentários do tipo: "Isso não é terror", "Nem me assustei, então não pode ser terror", ou "Como pode ser terror se passei o filme rindo?". São afirmações que acabam por revelar uma visão restrita do que o horror pode ser e das diferentes reações que ele pode provocar em cada espectador. O que me motiva a escrever sobre isso não é a intenção de ensinar ou corrigir ninguém, mas uma necessidade pessoal de desabafar e organizar esses pensamentos de forma mais ampla. Não lembro exatamente o ponto de partida ou o filme que me fez refletir sobre as diversas possibilidades do terror, talvez o Repulsa ao Sexo (1965) que assisti em 2010 ou 2011. A maneira sutil e ambígua que trata da questão psicológica que se deteriora com o avanço da trama pode deixar essas dúvidas. O tempo, os estudos, as leituras, as trocas com especialistas do gênero me fizeram perceber nuances e conceitos que fazem sim, Repulsa ao Sexo ser terror como tantos outros filmes que algumas pessoas teimam em negar pertencer ao horror. Tivemos um exemplo disso em 2015 quando o filme A Bruxa (de Roberto Eggers) foi lançado e recentemente com Longlegs (de Oz Perkins), mas já tivemos com Silêncio dos Inocentes (1991, dirigido por Jonathan Demme) e tantos outros que volta e meia são chamados de thriller ou drama psicológico.
Para entender as reações contemporâneas ao gênero, é crucial considerar sua evolução histórica e como as normas sócio-cultural moldaram suas narrativas ao longo das décadas, passando por transformações significativas que refletem as ansiedades e questões sociais de cada época. Nos anos 1920 e 1930, surgiram clássicos do horror gótico, como Nosferatu (1922) e Drácula (1931), que expressaram medos sobre a modernidade e a sexualidade. Já nos anos 1950 e 1960, o terror psicológico junto com o sci-fi tomou força, bastante influenciado pela Guerra Fria e originou obras como Vampiros de Almas (1956, de Dona Siegel) explorando o medo do desconhecido e as ansiedades sociais daqueles tempos.
Na década de 1970 e 1980, o surgimento do slasher, exemplificado em Halloween (1978, de John Carpenter), refletiu preocupações com a violência juvenil e a representação dos papéis de gênero, especialmente a figura da 'virgem'. Por fim, dos anos 2000 até hoje, presenciamos um renascimento do terror independente, onde filmes como O Babadook (2014, de Jennifer Kent) desafiam normas tradicionais ao abordar questões de luto e a luta interna contra demônios pessoais.
Uma frase que gosto sempre de enfatizar é de como o horror é plural no sentido de que pode assumir muitas formas e estilos diferentes. Há uma vasta gama de subgêneros e abordagens dentro do gênero, cada um com sua própria forma de causar impacto e provocar emoções. Imagina ir assistir a filmes de horror esperando só tomar sustos? O gênero te dá tantas possibilidades de se horrorizar, das formas mais sutis e profundas às mais viscerais. Vai muito além do susto imediato, ele se infiltra, deixa uma marca e nos faz questionar o que realmente é assustador na nossa realidade. É sobre aquele desconforto que fica, as ideias que perturbam, as reflexões sobre o que é monstruoso na humanidade. Há quem prefira mergulhar em um bom filme clássico, de narrativa lenta e atmosfera densa como acontece em O Iluminado (1980, de Stanley Kubrick), enquanto outros são atraídos pela tensão visceral dos slashers como em O Massacre da Serra Elétrica (1974, de Tobe Hooper) ou pela delicadeza sombria do horror psicológico como em Os Inocentes (1960, de Jack Clayton).
Nos dias atuais, consumir terror pode significar também explorar produções independentes e filmes estrangeiros, que muitas vezes trazem perspectivas culturais únicas para o gênero, um caso recente que provocou bastante discussão e gerou até um remake estadunidense, é a produção dinamarquesa de 2022 Não Fale o Mal (de Christian Tafdrup), um filme que oferece uma abordagem perturbadora e desconfortante sobre os limites da civilidade e a incapacidade de agir diante do mal iminente e das interações sociais cotidianas que vão de estranhas à insuportáveis. Ele mexe com medos antigos, mas que estão bem em voga hoje em dia, o medo do confronto direto, de rejeição e de vulnerabilidade social.
As formas de terror são muitas, e a resposta emocional a elas varia de pessoa para pessoa. Essa diversidade vai além das nossas preferências por subgêneros ou tipos de histórias, revelando também muito sobre quem somos e como lidamos com o medo em diferentes contextos. Eu, por exemplo, uma mulher, tenho no subgênero de invasão domiciliar e assassinos perseguidores, os mais assustadores para mim. Mesmo assim, desenvolvemos maneiras específicas de interagir com determinados filmes e suas temáticas. Quem fala disso melhor é Isabel Cristina Pinedo que aborda essas nuances em seu livro “Recreational Terror: Women and the Pleasures of Horror Film”, onde analisa não apenas como consumimos o gênero, mas também como nos envolvemos com suas narrativas, mesmo quando os papéis femininos muitas vezes estão presos a estereótipos convencionais.
Pinedo oferece uma visão instigante, destacando que, apesar dessas limitações, os filmes de terror podem refletir e desafiar normas sociais, proporcionando um espaço seguro para a exploração do prazer e da subversão. É interessante notar como essa dualidade permite que as espectadoras experimentem suas ansiedades e desejos de maneira catártica. Isso me lembra da fala da Dra. Robin Coleman no documentário Horror Noire (2019, de Xavier Burgin), onde ela discute o tratamento dado às pessoas negras em filmes de gênero.
Apesar das representações frequentemente problemáticas, Coleman ressalta que a comunidade negra é uma das maiores consumidoras de filmes de terror, evidenciando como a identificação e o engajamento com o gênero podem transcender essas narrativas limitantes. Viva as contradições!
O medo não precisa se manifestar apenas como susto, mas também como desconforto, ansiedade ou mesmo uma sensação de algo perturbador que não se entende completamente. E, sim, o humor também pode fazer parte dessa experiência. Muitos filmes de terror se utilizam da comédia, da ironia ou da sátira para criar uma camada extra de desconforto ou, pelo contrário, aliviar a tensão, sem deixar de pertencer ao gênero. Sua flexibilidade permite abraçar todos os outros gêneros pois tem como forma primordial explorar emoções humanas universais. Hereditário (2018, de Ari Aster), por exemplo, é carregado de drama, mas sem perder o foco no sobrenatural e no terror psicológico. O gênero se adapta sem perder sua essência, como em Corra! (2017, de Jordan Peele), que intensifica o horror ao fazer uma crítica social contundente, abordando questões raciais de forma incisiva. O filme utiliza o medo e o desconforto vividos por um grupo social específico para revelar as dinâmicas de opressão, abuso físico e racismo estrutural, sem abrir mão dos elementos tradicionais do horror, como o suspense crescente e uma constante sensação de ameaça.
Veja bem, não estou dizendo que gostar de sustos, choques e sangue está errado, mas o horror não se resume a isso e, pensar assim, pode limitar nossa experiência com uma ferramenta tão poderosa e complexa. O terror reflete ansiedades coletivas e individuais, funcionando como um espelho que nos faz encarar os lados mais sombrios da natureza humana. Ao sermos mais flexíveis para a diversidade de emoções e narrativas que o horror pode evocar, somos convidados a explorar não apenas os medos que nos assombram, mas também as verdades que frequentemente evitamos enfrentar. Assim, o cinema de terror se torna um espaço não apenas para o susto, mas também para a introspecção, o riso e a crítica social, enriquecendo nossa compreensão do mundo e de nós mesmos. Afinal, é nesse emaranhado de emoções que reside a verdadeira essência do horror: a capacidade de nos desafiar e nos transformar.