|Crítica Mostra 2024| 'O Senhor dos Mortos' (2024) - Dir. David Cronenberg
Crítica por Victor Russo.
'O Senhor dos Mortos' / Fênix Filmes
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A exploração do corpo após a morte para o voyeurismo. David Cronenberg comenta sobre os estúdios hollywoodianos e as grandes corporações, rejeitando o cinismo e se utilizando do próprio cinema para criar sua sátira
Em tempos de uma sátira cínica que dominou o cinema e ganhou um prestígio indevido, da Palma de Ouro para Triângulo da Tristeza às muitas indicações ao Oscar para diferentes longas de Adam McKay, que se colocam em um pedestal da superioridade bastante hipócrita, enquanto o fazer cinema vira algo secundário no mar de piadas óbvias e explicadas, é necessário um octogenário como David Cronenberg para perceber a sociedade americana e todos os medos contemporâneos com maturidade e uma certa dose de incompreensão. Em um momento em que os estúdios fazem demissões em massa e substituem trabalhadores das mais variadas áreas por mecanismos de inteligência artificial, a ponto de se usar da imagem e dos corpos de atores até post mortem, reconstruindo-os sem nenhum pudor em computação gráfica para lucrar rios de dinheiro com esses produtos nostálgicos, o diretor canadense tem um prato cheio para o seu cinema que há décadas retrata o corpo humano e seus limites, esgarçando-os visualmente e carregando o processo de subtextos.
Só que, se cineastas limitados como os já citados, o sueco e o americano, só conseguem olhar para o mundo a partir de ironias com os absurdos da extrema-direita e rir dessas pessoas sem propor nada, nem em discurso, muito menos em mise en scéne, resumindo suas obras a encenações extremamente convencionais e nenhum trato devido da imagem, Cronenberg percebe sua crítica antes de mais nada pelo cinema, como uma arte se autocomentando, enquanto visualiza e ressignifica o seu próprio cinema, percebendo como os códigos de um gênero dizem algo sobre a sociedade de cada época. Pouco se fala sobre como Cronenberg, muitas vezes resumido ao body horror, cria suas narrativas a partir de características próprias do cinema noir, muito evidente em longas como Mistérios e Paixões, ExistenZ e mesmo Crash - Estranhos Prazeres. Claro que não repete sua estrutura exatamente, mas percebe o filme noir como algo amplo, que não se resume apenas ao filme de detetive com uma femme fatale, mas é muito propício à sedução carnal e decadência social muito típicas do cineasta. O Senhor dos Mortos mira então no noir de conspiração, que tem em À Beira do Abismo o seu representante mais famoso e que marcou uma transição desses filmes no período de Segunda Guerra e logo após o conflito para o pós-guerra e início da Guerra Fria, o medo da espionagem e a paranoia social implantada em toda a sociedade. Ao resgatar tal filme tão específico, Cronenberg traz de volta um tempo que já passou, mais que parece impossível de se recontextualizar por completo, já que os Estados Unidos estão sempre criando os seus inimigos imaginários, e a Rússia, a China e o comunismo voltam a ganhar esse espaço pela ameaça hegemônica à economia do país norte-americano. Então, a ressignificação está na prática, ou seja, nas possibilidades dos meios, os dispositivos contemporâneos que marcam a evolução tecnológica e carregam novos medos e a facilidade de espalhar teorias da conspiração de forma descontrolada.
Entretanto, a conspiração não é a motivação do filme, e, sim, uma espécie de desvio e condutor para a incerteza para com o futuro. Quem vandalizou aquelas tumbas se vende como a pergunta a ser respondida pela narrativa, mas engana-se quem acredita que o filme determina seu interesse pela resposta desses mistérios. “Quem é o responsável?” é apenas um MacGuffin para essa reflexão quase meditativa do cineasta sobre a contemporaneidade, tendo como interesse principal o próprio cinema e o rumo que ele vai tomando a partir de bilionários (percebam que o protagonista fazia parte dessa indústria) e acionistas sem rostos (os detentores daquelas tumbas nunca aparecem, só são mencionados). O corpo que Karsh (Vincent Cassel) tanto almeja e acredita não conseguir ficar sem, a ponto de se envolver com a sua cunhada (Diane Kruger), justamente por ela compartilhar da mesma imagem da irmã e da paranoia do protagonista, é na verdade uma posse, mediada pela tecnologia para o prazer visual daquele homem, algo bastante explícito na cena de abertura, quando o corpo nu da esposa é percebido pelo olhar escondido daquele marido. Mais do que um mero fetiche, Karsh é sedento pela posse, por ter o controle do destino daquele corpo, como os executivos de estúdios que assinam contratos com atores, extras e figurantes para criar um banco com suas imagens com a liberdade de usá-las para sempre, de forma completamente desregulamentada.
É curioso perceber como Cronenberg assume essa superficialidade da própria imagem, busca uma certa simplicidade na encenação e se apoia no texto para justificar essa incompreensão. Ao mesmo tempo, traz de volta a sua criação de um mundo que parece existir nos bastidores, imperceptível aos olhos da sociedade, representada aqui no primeiro date de Karsh, com uma mulher que sai assustada com as práticas e os desejos do bilionário, enquanto todas as demais personagens que habitam este mundo em nenhum momento o enxergam com estranhamento, mas com naturalidade. Assim, Cronenberg rejeita esse cinismo que diminui o personagem, consegue fazer dele uma figura tão complexa quanto abjeta em muitas das suas práticas, e, assim, carregá-lo com os medos e frustrações do momento presente, como a materialização das práticas da sociedade americana, sendo o voyeurismo (base do cinema) com os já mortos apenas um dos muitos temas.