|Crítica Mostra 2024| 'Ainda Estou Aqui' (2024) - Dir. Walter Salles
Crítica por Victor Russo.
|
Um tanto apelativo e mirando no mercado internacional, Ainda Estou Aqui tem Fernanda Torres sustentando todo o longa em seus ombros, na solidão do controle das dores e emoções
O prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza e todo o investimento da Sony Classics para colocar Ainda Estou Aqui no próximo Oscar não é por acaso. Walter Salles, que inclusive já dirigiu filmes em Hollywood, é conhecido por essa abordagem mais universalista, um olhar cinematográfico muito mais próximo do americano do que da estética e narrativa brasileira. Todos os elementos estão ali presentes: a protagonista única, o foco na dramaturgia, o apoio em ser baseado em fatos reais, as atuações mais contidas etc. Tal abordagem passa longe de ser um problema, a ideia de uma estética brasileira nunca terá fim, é uma luta constante, da qual Salles não planeja se envolver. Para ele, basta fazer cinema como conhece, um longa de roteiro e atuação, não eximindo o seu papel de criar um recorte bastante brasileiro, mas o fazendo sob certas convenções que não restringem o seu público. Assim, estabelece bem aquela família feliz, em um Rio de Janeiro ensolarado, que vê apenas vislumbres de um prenúncio que está por vir, da Coca-Cola para fritar no sol ao futebol na rua. Ao mesmo tempo, parece preencher caixas específicas ao final para concluir aquela história, seja pelos textos explicativos, seja pelos dois epílogos que tentam arrancar uma recompensa dramática e de alívio no espectador.
Se Ainda Estou Aqui funciona, então, é menos por uma falta de pretensão, já que o longa é contrário a qualquer ousadia, mas pelo feijão com arroz bem feito, prato executado por um diretor que pode ser acusado de tudo, menos de incompetente. Se tudo se inicia nos convidando a conhecer aquela família, suas pequenas interações e um convívio saudável, o filme nos pega quase tão desprevenidos quanto o faz com Eunice (Fernanda Torres), vendo seu marido ser preso pela ditadura, sem obter respostas antes de ser levada, encarcerada e solta com as mesmas informações que tinha antes. O golpe é sentido e Salles o aproveita para mudar o jogo, dar à personagem de Torres o protagonismo total, uma personagem que rapidamente é obrigada a mudar, sendo colocada em uma balança dolorosa de procurar o marido e lutar por respostas por um lado, e manter seus filhos por fora, seguindo suas vidas com o máximo de tranquilidade possível, por outro. Sem grandes sacadas, a mise en scéne se altera para buscar a dor solitária dessa mulher, o ensolarado vira escuridão com apenas um foco de luz, que nada muda essa presença mais soturna, os planos cheios se esvaziam para vermos Eunice repleta de espaços inabitados a sua volta. Mais do que uma personagem que conduz o longa, Torres vira o filme em si, cabe a ela sustentar tudo por sua expressão, carregar em seus ombros esses sentimentos internalizados, enquanto, como a câmera de Veroca ou as fotos que ficam, Salles assume o papel do que registra, a imagem cinematográfica como a realidade incontestável que enfrenta o regime opressor.
Só que, se o filme caminha sem muitas modulações, preso a essa esposa que mantém o silêncio, a não ser para pedir aos filhos que sorriam frente à câmera, simulando uma realidade incapaz de nos enganar, os epílogos tratam de almejar uma apoteose meio traiçoeira, um primeiro clímax dramático pela conquista de sentimento ambíguo que até funciona, mas vem ao custo de diversas cenas deslocadas que servem para reforçar a importância posterior que aquela mulher adquiriu, ainda que pouco tivessem a ver com o cerne da narrativa. Já o segundo epílogo é rasteiro, parece um protocolo para o Oscar, ao mesmo tempo que faz dessa apelação também uma manipulação revestida de homenagem, uma desculpa para colocar Fernanda Montenegro fazendo o mesmo papel que a filha, com Alzheimer, imóvel, apenas para buscar um choro fácil meio covarde. Não é papel da crítica dizer o que deveria ser feito, mas ao se multiplicar os textos finais que apenas reforçam o que foi visto nos epílogos, fica um gosto amargo de que o filme teria sido feito para se fechar com a partida daquela família e só se usou dos avanços no tempo para se tornar ainda mais didático e universal.
No fim, tudo se resume a recortes e Salles escolheu contar uma história da ditadura por aquilo que lhe é familiar, uma família com poder aquisitivo e prestígio midiático, que, justamente por isso tem sua história considerada mais importante que a de tantas outras que sofreram com o regime militar. Fica claro a incapacidade de reconhecer as relações de classe, mas tudo se justifica em algum sentido ao desviar o olhar para essa mulher, compreendendo a injustiça e a dor como sentimentos compreensíveis por qualquer ser humano. É justamente nessa ambiguidade que Ainda Estou Aqui nada, na potência de um bom cinema, mais preocupado em ser “redondinho” do que em se arriscar. O competente que agrada quase todo mundo, mas corre o risco de ser esquecido em sentimento e lembrado apenas por conta de prêmios.