|Crítica| 'O Quarto ao Lado' (2024) - Dir. Pedro Almodóvar
Crítica por Victor Russo;
'O Quarto ao Lado' / Warner Bros. Pictures
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Primeiro longa-metragem em língua inglesa de Pedro Almodóvar tem uma transposição do seu estilo para a sobriedade americana, enquanto o país serve como acirramento para suas reflexões sobre o fim da vida e do mundo
O Quarto ao Lado chega na carreira de Pedro Almodóvar como um projeto bem acabado, após dois “ensaios” do cineasta. O curtas A Voz Humana, também protagonizado por Tilda Swinton, e o recente faroeste revisionista gay Estranha Forma de Vida serviram como experimentos na carreira do cineasta, seja pelo isolamento do primeiro que se passa todo com uma personagem no mesmo cenário, seja pelo gênero e época do segundo, uma espécie de transição programada que se estendeu por anos, enquanto ele seguia fazendo alguns de seus melhores filmes em território espanhol. Assim, o seu novo longa, vencedor do Festival de Veneza, já chega pronto, como um filme recheado com as principais características do cineasta, mas sem nunca soar como uma mera transposição do seu cinema para outro país. Há uma razão de ser nesse território e em como os Estados Unidos marcam essa nova obra do diretor. As casas continuam apresentando decorações inusitadas e coloridas, as personagens usam figurinos com tons vermelhos e verdes chamativos, a trilha sonora marca presença com aquelas notas que não saem da cabeça após o fim da projeção e o próprio melodrama sobre personagens femininas se posiciona no centro da narrativa. Mas a língua é outra, a sonoridade e a carga novelesca do melodrama espanhol já não se faz presente, apesar de conservar uma aura de mistério bastante profunda e até meio farsesca.
Não se trata de uma adaptação necessariamente. Não no sentido de combinar o seu cinema ao drama mais “oscarizável” que domina os filmes de final de ano no país norte-americano. Trata-se de um cineasta que transpõe suas percepções de mundo e de cinema para um local em que possa encarar tais questões sob um viés diferente. Se o fim, da vida e do mundo, assim como as práticas neoliberais e seus resultados, já apareciam em obras anteriores de Almodóvar, ao se atirar em solo estadunidense, tudo é ressignificado. A nação mais poderosa e destrutiva do planeta não é um mero espaço para o encenar a vida, longe disso, é o lugar em que o fim do mundo parece mais presente e com responsabilidade bastante grande. O diretor não faz floreio, nem trata com símbolos, é explícito por meio de Damian (John Turturro), que se senta à mesa e despeja todas as suas frustrações, em um tom um tanto cômico pela exposição, ao mesmo tempo desesperador pela realidade do discurso.
É nessa noção da comédia enquanto forma de rir do que não sabemos lidar que Almodóvar constrói a relação entre Ingrid (Julianne Moore) e Martha (Swinton). Um reencontro como despedida em que a que fica (Ingrid) sente a dor da perda, enquanto a que vai (Martha) já aceitou a finitude e está tranquila em deixar o mundo para trás, assim como tudo o que viveu. Se o diretor tem nesse melodrama um pouco mais sóbrio, mas ainda charmoso e com vislumbres de exagero, a profundidade humana de seus temas marcada no rosto de suas personagens, sobretudo no uso constante do close-up, que domina grande parte da narrativa, ele cria também um jogo interessante entre o público e Ingrid. Assim como a personagem de Moore, nós permaneceremos nesse mundo ruindo, que Damian vê sem qualquer perspectiva de futuro, e, tal qual a personagem, tememos a morte como esse ser desconhecido e assustador (pelo menos é como Almodóvar nos impõe essa perspectiva).
Assim, não somos dominados por uma mera reflexão sobre o fim, nem convidados a sofrer pela perda que Ingrid terá logo, ainda que a expectativa seja traiçoeira pela incerteza do momento certo. Pelo contrário, a narrativa tem a tranquilidade de Martha, a leveza para lidar com o momento, enquanto nós reagimos como Ingrid. Tá aí a graça que Almodóvar tira, como se entendesse a nossa condição e incompreensão em perceber a naturalidade do partir. Lida com tudo por uma certa frontalidade de símbolos e gêneros, desde a porta vermelha fechada como significação da morte, até, principalmente, a proposição de um humor situacional que para além da graça, há um desconforto implícito, como se ríssemos não apenas de uma piada, mas tratássemos cada situação como uma gargalhada pela dificuldade que é brincar com o morrer. Tão gracioso, quanto trágico, o diretor extrai o melhor do seu brilhante trio de atores, ressignifica o seu olhar de cinema sem perder a personalidade, e só não consegue crescer mais porque os Estados Unidos e o inglês não são capazes de ferver como a Espanha e o espanhol que corre nas veias de Almodóvar.