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|Crítica| 'O Aprendiz' (2024) - Dir. Ali Abbasi

|Crítica| 'O Aprendiz' (2024) - Dir. Ali Abbasi

Crítica por Victor Russo.

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'O Aprendiz' / Diamond Films

 

Título Original: The Apprentice (EUA)
Ano: 2024
Diretor: Ali Abbasi
Elenco: Sebastian Stan, Jeremy Strong, Maria Bakalova, Emily Mitchell, Martin Donovan e Patch Darragh.
Duração: 123 min.
Nota: 3,0/5,0

 

Entre a inspiração em Succession e a cinebiografia mais convencional, O Aprendiz só tem personalidade quando sente prazer com seus monstros e suas ações

Ver Jeremy Strong vivendo um personagem sem escrúpulos, de cara fechada, extremamente perturbado e agressivamente descontrolado, que por coincidência também tem Roy no nome, remete rapidamente a Succession, a série que o tornou mais popular para um grande público (apesar da extensa carreira do ator anterior ao seriado). Entretanto, muito mais do que Strong, há um estilo que a série ajudou a estabelecer e virou tendência nos últimos anos, sendo Succession uma das únicas obras a se utilizar bem desse formato, que sugere uma decupagem documental, enquanto inundou-se de sátiras que tinham nessa câmera na mão constante uma tentativa meio tola de criar ritmo e piadas. Ali Abbasi reconhece a tendência e mergulha de cabeça nela sem pestanejar, recusando-se à evidência do zoom, mas abraçando essa percepção de que a câmera na mão é “cool”, o que até funciona na primeira parte ao inserir Donald Trump (Sebastian Stan) naquele mundo caótico que ele vislumbrava fazer parte, mas perde o efeito quando o longa deixa de ser uma dinâmica mestre e aprendiz e vira apenas uma cinebiografia sobre o ex-presidente americano, que busca mostrar momentos mais “relevantes” em sua vida, quase sempre com intuito apenas de tornar óbvio de onde veio os pensamentos e ações atuais dele. No processo, Abbasi mais uma vez faz da sua crítica prazer visual, sendo a cena de estupro o auge disso.

Não é inesperada a dificuldade que o filme teve para conseguir distribuição nos Estados Unidos, sendo financiado por um trumpista que só descobriu quando o filme ia estrear em Cannes que Abbasi tinha uma obra crítica a Trump e não para exaltá-lo em ano de eleição (imagina bancar um longa sem conhecer o viés do seu diretor e acreditar que o Festival de Cannes selecionaria uma homenagem a essa figura abjeta. Uma ingenuidade deliciosa de assistir, mais do que o filme em si). Por outro lado, os próprios democratas torceram o nariz para o que viram, um tanto compreensível, já que não só há uma certa humanização do protagonista inicialmente, como uma sensação, primeiro, de que ele foi influenciado e manipulado a virar o que virou, e segundo, uma incapacidade de justificar a ascensão financeira dele, resumindo a uma ou outra fala dizendo que ele tava devendo ou não pagou os funcionários, mas tudo muito superficial e rápido. Assim, Abbasi desvia o foco da crítica para uma ironização da figura, reforçando aquelas características mais óbvias que todos os opositores amam tirar sarro, como a obsessão pela estética que o deixou com a pele laranja, por exemplo. Além disso, mais uma vez a inserção da cena do estupro (retorno a ela a seguir). Ou seja, o financiador trumpista não teve a homenagem, os democratas não tiveram a vilanização completa que esperavam, ambos os lados criticaram, mas, no caso dos opositores políticos, pelos motivos errados.

Tudo está no prazer que o filme sente e quando. Um prazer visual, um prazer por fazer parte, um prazer por mostrar e como mostrar. Abbasi já havia demonstrado anteriormente sua incapacidade de lidar com a imagem para construir seu discurso mais evidente, visto que Holy Spider, inconscientemente, sente muito mais prazer pelo serial killer, e o exibe matando as mulheres, do que em seguir a jornalista que rapidamente perde o protagonismo. Em O Aprendiz, acontece algo semelhante, mas com uma ambiguidade mais interessante na primeira metade. Somos inseridos naquele mundo pela figura torpe que já conhecemos, Trump quer pertencer àquele espaço, idealiza e se espelha naqueles poderosos. Por mais que Abbasi já esteja tirando sarro dessas características mais sabidas do laranjão, na prática, ele mergulha naquele mundo com o mesmo ímpeto e deslumbramento que Trump. Roy Cohn rapidamente se apresenta como uma figura detestável, dizendo coisas como “nunca assuma que perdeu”, “ataque, ataque, ataque” e “negue tudo”, enquanto revela uma série de crimes para ter chegado naquela posição, como chantagem e gravações escondidas. Só que a câmera de Abbasi não o detesta como os nossos princípios ou os do diretor, pelo contrário, há fascínio em como demonstra Strong em seu estilo metódico de atuação, uma graça pela rigidez e pela própria relação com o que fez como Kendall Roy. Entretanto, é justamente nesse momento que o longa tem personalidade, quando a decupagem, para soar documental e próxima daqueles eventos, estampa a relação mestre e aprendiz com proximidade e ambiguidade. Estaríamos nós errados em perceber a podridão daqueles personagens e ainda assim querer seguir cada próximo passo? Claro que não, é justamente uma das graças do cinema essa possibilidade da linguagem em criar discursos controversos e nos chacoalhar moralmente. Pequenos e grandes traços de personalidade aparecem, como o fato de Roy ser uma metralhadora de preconceito, mas esconder sua sexualidade, enquanto Trump descobre esse segredo (que o seu mentor é gay) e mantém o advogado ao seu lado enquanto convém. A própria relação dele com Ivana (Maria Bakalova) inicialmente vem carregada de complexidade (se vista pelo ponto de vista desse homem que não sabe perder). Claramente, em sua cabeça, ele está agindo corretamente, lutando por quem ama, mesmo que friamente percebamos que se trata de mais um troféu em sua prateleira, e, que, no processo, o romantismo na verdade é uma desconfortável perseguição, como se ele só soubesse agir tratando os demais como presas para servi-lo.

Porém, em algum lugar, Abbasi parece reconhecer essas ambiguidades, e, quando chuta Roy para escanteio, e passa a focar no aprendiz sem seu mestre, é como um “pedido de desculpas” pelo que veio antes, uma anunciação de que agora só veremos o pior do Trump, como deveríamos esperar desde o início. É quando o longa começa a ruir, porque não tem mais interesse, tudo vira um grande protocolo, uma sátira meio barata que só reforça o que queremos escutar. A estrutura se modifica, vira uma cinebiografia mais tradicional, uma espécie de “melhores momentos” que não se aprofunda em nada, nem no personagem, nem em como construiu seu império realmente. É uma sucessão de cenas apenas como objetivos, como mostrá-lo olhando para outras mulheres e traindo Ivana, uma consulta com um médico que revela sua preocupação com a calvície e a barriga, ele mandando limpar a cena que seu ex-mentor com Aids sentou, uma negação ao irmão que morre logo em seguida e por aí vai. É meio que um checklist de coisas para retratar o Trump de hoje, o que já conhecemos. O filme perde o interesse por si mesmo, e se transforma em piscadinhas óbvias para o público que finalmente pode ficar moralmente confortável vendo o monstro ser retratado como uma pessoa ruim. Mas, mesmo nesse processo, Abbasi constantemente parece não entender o poder da imagem para construir mensagem, e, como em Holy Spider, mais uma vez a pretensão crítica se transforma em exibição despropositada. 

Retornamos à cena do estupro, então, que tem como objetivo principal mostrar Trump cometendo o crime mais tenebroso que se pode imaginar, no caso, estuprando a própria esposa que o confrontou. Só que, Abbasi mantém o estilo que domina o longa, filma como se fosse uma câmera escondida naquela sala, faz questão de exibir Ivana desesperada, gritando, chorando e não conseguindo se libertar, enquanto é violentada. A personagem que é mal explorada durante todo o longa e se resume a frases prontas como “eu não sou uma esposa-troféu”, só vai ganhar relevância como mensagem, com o objetivo de falar sobre Trump e seu crime, e não sobre ela mesma. No processo, ela é usada por Abbasi como um troféu para pontuar algo. O cineasta nem percebe que sua ânsia pelo choque faz com que a crítica se transforme em um prazer pérfido e asqueroso, ao fazer a dor e o desespero femininos de novo serem mostrados com realidade, sem cortes, uma exibição meio voyeurista.

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