|Crítica| 'A Garota da Vez' (2024) - Dir. Anna Kendrick
Crítica por Victor Russo.
'A Garota da Vez' / Diamond Films
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Com montagem confusa, Anna Kendrick demonstra habilidade para criar cenas e momentos, mas tem dificuldade de decidir qual filme quer realmente fazer
Depois de Olivia Wilde e Zoë Kravitz (na verdade, A Garota da Vez foi exibido em Toronto meses antes da estreia de Pisque Duas Vezes), Anna Kendrick é mais uma atriz hollywoodiana na casa dos 30 anos se arriscando na direção. Mais do que a idade, é perceptível a vontade das três em falar sobre temas semelhantes, partindo quase sempre dos homens como abusadores em potencial, que se utilizam de um certo charme e dominância para enganar as mulheres, vistas por eles como presas. Porém, ao mesmo tempo, os três filmes partem de caminhos bastante distintos, se Wilde faz mais uma releitura de uma ficção científica que posiciona a protagonista em uma espécie de experimento, Kravitz tem referências contemporâneas, mas se utiliza de elementos fantásticos para construir o seu terror, Kendrick mira no real. O monstro aqui é um serial killer que existiu, elemento não só relevante pelo interesse em contar essa história, mas também uma espécie de calcanhar de aquiles do longa, justamente por ter uma certa dependência para com a história que existiu, ou melhor, para com as histórias que envolvem o caso Rodney Alcala (Daniel Zovatto).
A pergunta que fica é: qual é o verdadeiro filme aqui? A montagem se esforça para criar conexões, revelar o tema e os acontecimentos como parte de uma mesma narrativa, só que isso nunca acontece realmente. Laura (Nicolette Robinson) se transforma nessa espécie de ponto de correlação, entre o filme mais genérico, mas bem conduzido, de serial killer, e a narrativa da atriz em momento complicado na carreira (Anna Kendrick) que se sujeita a participar de um programa de namoro em rede nacional para ter visibilidade a fim de conseguir novos papéis, e tem, sem saber, o próprio Alcala como um dos participantes no palco. Assim, Laura, que já conhece o assassino, tem as múltiplas funções narrativas de revelar seu trauma ao vê-lo, ligar os dois filmes diferentes e, ao mesmo tempo, ser a que denuncia sem ser ouvida, reforçando esse machismo estrutural que cerca o longa. Se até funciona em seu desespero de ser rechaçada e posta em uma posição vulnerável, ficar sozinha em um lugar escuro à noite já é mais do que suficiente para temermos por sua vida, ela nunca realmente consegue fazer essa ponte narrativa, já que, no fim, ela mesma não parece parte das outras duas histórias. Mais do que isso, fica evidente o fator de personagem-dispositivo, a partir do momento em que não há uma construção para ela, Laura surge do nada apenas com o objetivo de revelar que houveram denúncias contra aquele serial killer que não foram levadas a sério. É uma personagem-tema tão deslocada que fica bastante claro que ela não existiu na vida real, que só foi colocada para preencher uma função.
Assim, retornamos para os dois filmes de real interesse dentro de A Garota da Vez. Fica claro que existem dois bons filmes ali, com uma cineasta que demonstra um olhar apurado para a composição de planos e criação de tensão pela decupagem, com destaque para a cena do estacionamento, construindo a perseguição apenas pelo som, para depois vermos o assassino se aproximando ao fundo e quando ele aparece repentinamente a mise en scene se altera para o desespero claustrofóbico dos closes. O próprio programa de TV, sobretudo quando Sheryl (Kendrick) vira o jogo e toma o controle, ganha uma energia pela montagem bastante única, uma brincadeira da cineasta entre a comédia de humilhar esses homens e fazer os predadores se tornarem seres patéticos, ao mesmo tempo em que apenas o público sente o perigo ao reconhecer Alcala como o participante que se sai melhor, que usa o seu charme para fazer suas vítimas escutarem o que desejam e demonstrarem a vulnerabilidade que ele precisa para atacar. Há ainda ótimas ideias visuais, dos planos de espelhos com esses personagens que não revelam suas verdadeiras identidades nem para eles mesmos, a câmera usada como um discurso da representação da mulher frente ao olhar masculino objetificador, planos que enclausuram a protagonista ou os reflexos que demonstram olhares perigosos, e a própria atriz-diretora comentando sobre sua própria carreira e persona cinematográfica, tanto ao dar vida a Sheryl, quanto quando ela fala sobre não fazer papéis de nudez. Os bons momentos e ideias são muitos, Kendrick tem talento para construir cenas, mas retornamos à mesma pergunta: como conciliar esses dois filmes?
A montagem nunca consegue fazer isso, apelando para idas e vindas, anos sendo mostrados, a tentativa de construir tensão crescente nas duas histórias que correm paralelamente e os textos finais que tentam justificar de forma trapaceira que tudo é mostrado porque realmente aconteceu. Mas, na verdade, é uma escolha de ponto de vista, ou falta de escolha, em alguma medida, o que cria mais uma pergunta, a mais relevante na verdade: qual dos dois filmes Kendrick mais queria fazer? É evidente como a cineasta compreende que sem o seguimento televisivo o filme não teria nenhum diferencial em relação a outros filmes de assassinos de mulheres. Mais do que isso, se não existisse o foco em Sheryl, seria quase impossível a narrativa não cair na armadilha de dar o protagonismo a Alcala. Todavia, Kendrick parece sentir o peso de narrar apenas o que envolve a sua personagem, como se isso tirasse a seriedade do assunto, e faz questão de encenar rapidamente algumas mortes. No final, não existe muito nem uma unidade de estilo, o longa fica desconjuntado, vivendo de boas cenas desconexas.