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|Crítica| 'Um Silêncio' (2024) - Dir. Joachim Lafosse

|Crítica| 'Um Silêncio' (2024) - Dir. Joachim Lafosse

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Um Silêncio' / Imovision

 

Título Original: Un Silence (Bélgica)
Ano: 2024
Diretor: Joachim Lafosse
Elenco: Emmanuelle Devos, Daniel Auteuil, Larisa Faber e Matthieu Galoux.
Duração: 100 min.
Nota: 3,0/5,0
 

Pulverizando a tensão de sua trama entre os membros da família, Joachim Lafosse rejeita a intimidade para colocar o espectador fora de qualquer privilégio na observação

Ao que tudo indica pela introdução do filme e todo material que o acompanha, Astrid (Emmanuelle Devos) a esposa, seria a protagonista oficial de Um Silêncio. Provavelmente a única personagem que ganha um bom número de closes em seu rosto, ressaltando alguma proximidade com seu estado emocional durante os desdobramentos, a mulher teria de fato a força e a complexidade necessária para sustentar o papel principal caso a abordagem do longa se dedicasse a um estudo de personagem em suas ambiguidades morais e opressões sociais somente. No entanto, não é o caso. Em um roteiro assinado por quatro pessoas, uma delas o próprio diretor Joachim Lafosse, a obra rejeita qualquer protagonismo e mais do que isso, a intimidade de seus personagens é mantida oculta, protegida por uma barreira invisível. A grande casa em que os Schaar vivem demonstra poder e dinheiro e mantém um grupo de jornalistas sempre a postos em seus portões. Deste lugar, observadores são limitados a uma distância para contarem a história do famoso e bem visto advogado (Daniel Auteuil), e é como se essa mesma medida fosse aplicada ao espectador do filme no lado oposto, inserido dentro da mansão, tecnicamente mais próximo dessas pessoas, mas tão distante quanto de seus verdadeiros pensamentos e emoções. Um Silêncio é um filme ambicioso em suas propostas, ao lidar com a complexidade de seus personagens, da esposa silenciada que apoia a fachada da família durante anos, o filho adotivo problemático, o marido que defende crimes que ele mesmo já cometeu e esse segredo que paira entre uma estrutura muito bem montada para que o público que se limita aos portões da mansão nunca perceba as rachaduras. Entre um machismo que exerce peso nas relações conjugais, traumas familiares e uma maquiagem de décadas para esconder problemas sérios, são muitas as questões abraçadas que sempre são trabalhadas nesse lugar afastado, pouco é partilhado em algum privilégio que essa observação por dentro da casa permite, como se tudo que cada pessoa na família lida fosse muito particular e a história real dos Schaar em toda sua profundidade só pudesse realmente ser acessada por eles, restando ao espectador um vislumbre de mero consumidor de notícias.

François é possivelmente o elo mais enigmático com que vamos lidar, visto que o longa se mantém ainda mais distante dele, evitando closes e momentos privados, é quase impossível compreender se está sendo manipulador ou apenas tentando escapar de seus crimes, no que acredita e como se sente. Há um momento muito específico em que o vemos sentado na escuridão com o computador de costas para as câmeras, o som indica que na tela o advogado assiste a pornografia - e pelo teor da trama deduzimos do que se trata -, porém, ele segue imóvel, sem se tocar. A cena dura poucos segundos e rapidamente é cortada para um close de Astrid - ressaltando a diferença que a abordagem de Lafosse pretende com o casal - tratando justamente do crime do marido com seu próprio irmão. O homem que esconde tantos segredos e crimes, pouco conhecemos, sua intimidade nos é negada, mas não é intenção que essa proposta deixe dúvidas sobre as ações de François, essas são bem definidas justamente pela denúncia que vem à tona, do cunhado abusado 30 anos no passado, e o material consumido em seu computador. Um Silêncio não o trata como um simples vilão, mas só desenha sua complexidade pelo próprio distanciamento que impõe, o mantendo com certo mistério e impedindo qualquer relação mais aprofundada com seu personagem, até mesmo o julgar de forma negativa acaba se dissipando no meio das outras questões. Isso porque ao mesmo tempo em que o olhamos de longe, sabemos que o filho está prestes a cometer um crime e, dada a introdução, a narrativa se alinha de forma a chegar até esse ponto, e enquanto isso tudo acontece, também há todo o desenvolvimento de Astrid de esposa silenciada que protege o marido e a fachada familiar até finalmente se libertar e permitir-se abandonar essa estrutura opressiva. 

Recusar colocar o espectador dentro da intimidade desses personagens é uma abordagem interessante pelas nuances mais profundas que podem ser trabalhadas, mas as muitas questões que vão sendo colocadas acabam por pulverizar a tensão e até mesmo o peso dos acontecimentos. A sensação que fica ao final de Um Silêncio é que acabamos de ver algo bastante denso que precisa ser digerido, mas servido de forma a dificultar esse processo. Há muito mais na história de Astrid que poderia ser interessante, incitado pelos closes que parecem querer romper as barreiras, mas ainda não se permitem adentrar sua mente. Assim como o que cresce em Raphael, do trauma na infância que o torna tão doente quanto o pai, rompendo sua raiva pelo medo de chegar ao mesmo ponto imperdoável que ele, pouco é lidado com a devida profundidade necessária para elaborar a profusão de emoções e temas implicados nessa relação. As problemáticas e dramas familiares são mais caros a Lafosse respeitando certa distância de seus membros, conferindo a quem assiste uma simetria no posicionamento com os abutres da mídia, como bem ressaltada na cena do rompante violento do filho. Estamos na escuridão, afastados, do outro lado do escândalo, até podemos conhecer antes o que ocorre, mas vemos tanto mistério como quem está de fora.

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