|Crítica| 'O Bastardo' (2024) - Dir. Nikolaj Arcel
Crítica por Victor Russo.
'O Bastardo' / Pandora Filmes
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Ao centrar-se na figura de Mads Mikkelsen, mas não permitir que nos aproximemos tanto dele, NIkolaj Arcel fica dividido entre a história e a construção mitológica do cinema
Adaptação do livro de 2020 O Capitão e Ann Barbara, o longa de Nikolaj Arcel se afasta um tanto do que o título do livro sugere e se aproxima de O Bastardo (o título brasileiro é fiel ao original). Não é dizer que o longa nada tem do romance entre Ludvig (Mads Mikkelsen) e Ann Barbara (Amanda Collin), mas este está longe de ser o foco, isso é, se dá para definir um verdadeiro enfoque para a obra. Assim, resta pensar no bastardo do Rei da Dinamarca, Ludvig, como o objeto de interesse e condutor dessa narrativa. É a partir dessa perspectiva que o filme de Arcel ganha substância, nessa dicotomia entre história (o que seria uma aproximação com a cinebiografia mais tradicional) e o mito por trás desse homem naquele espaço específico. Empatia e relato estão sempre em conflito, ora buscando closes do rosto sofrido ou raivoso de Mikkelsen ou ao captar algum tipo de amor que ele mesmo não entende por Ann Barbara e Anmai Mus (Melina Hagberg), ora dando saltos temporais por eventos importantes, utilizando-se de textos como marcações e, principalmente, do ponto de vista cinematográfico, saindo de perto do protagonista para focar em diálogos entre homens poderosos responsáveis por controlar o futuro de Ludvig, funcionando mais como exposição para a história do que como narrativa desse personagem.
É então no vasto ambiente inabitado que Arcel tenta combinar essas forças um tanto distantes. Ao mesmo tempo em que os grandes planos abertos diminuem o personagem e, consequentemente, a aproximação emocional dele para conosco, há também uma preocupação pela imagem cinematográfica enquanto construtora de uma mitologia própria. Não é mais a história real, é o espaço construído pela lente da câmera, pontuado em grande medida pelo contraluz, mas também capaz de adentrar lugares, filmar olhares, conceber um espaço que só existe completamente em nossa imaginação. É esse espaço em disputa, tanto na história do filme, quanto na relação real x encenação, que se desenha como o grande palco do filme. Por mais que muito do que acontece ali é proveniente de castelos escuros, tanto da realeza dinamarquesa, quanto do nobre mesquinho local, a aplicação naqueles ermos ganha uma vida própria, muito semelhante ao crescimento de batatas naquela terra antes infértil. Tudo é construído a partir da dedicação de um homem e duas mulheres e do sangue como motivador constante desses conflitos. Por mais que de tempos em tempos o longa nos lembre que se trate de uma história real, é quando Arcel vai fundo na construção de Ludvig como um mito cinematográfico, uma figura complexa em conflito e que deixa a sua marca naquele universo por suas ações contraditórias, no se vingar, buscar o título real ou abandonar a filha adotiva contra o amor crescente por Ann Barbara, um senso constante de justiça ou mesmo a consciência dos próprios erros para buscar uma redenção ao final, o que tem muito mais de mitologia do que de realidade, ainda mais pensando no século XVIII.
Dessa forma, toda a construção do filme funciona quando encontra esse enfoque, até rítmico e tonal, por meio das imagens desse homem naquele espaço e de todos os que o cercam na redondeza. Fica claro, então, como sempre que a narrativa de O Bastardo se desvia para abordar figuras mais distantes, Arcel perde essa dedicação para construir certas caricaturas, reforçando um certo valor maniqueista do embate entre Ludvig e os agentes de poder, maniqueismo esse que não está presente na própria figura do protagonista. Porém se ainda há uma força na vilania de De Schinkel (Simon Bennebjerg) ou nas participações menores de Anmai, quando o filme precisa se aproximar das figuras femininas adultas, os interesses românticos de Ludvig, Ann Barbara e Edel (Kristine Kujath Thorp), ele escorrega completamente ao não ser capaz de dar o peso pedido para essas personagens tão escanteadas. Mais uma vez, a representação de mitos históricos masculinos faz das personagens femininas apenas dispositivos secundários trabalhados por conveniência, sendo essa, quase sempre, uma forma de reforçar a grandeza e dedicação do homem, a partir, muitas vezes, do sofrimento dessas mulheres, aqui se apresentando até visualmente, em agressões constantes, e encontrando apenas um refresco mínimo na vingança contra De Schinkel. E, assim, reforça mais uma vez o olhar de Arcel muito mais para o Bastardo do que para o capitão e Ann Barbara.