|Crítica| 'Fernanda Young - Foge-me ao Controle' (2024) - Dir. Susanna Lira
Crítica por Victor Russo.
'Fernanda Young - Foge-me ao Controle' / Synapse Distribution
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Em sua devoção por Fernanda Young, Susanna Lira reforça a percepção de que os melhores filmes de homenagem recentes são os que parecem ser conduzidos pelos cinebiografados
Ainda que um gênero presente historicamente em todos os cinemas do mundo, a cinebiografia, seja ficcional ou documental, tem crescido no cinema hollywoodiano, o que faz sentido para uma indústria sem perspectiva de futuro voltada completamente para nostalgia, sequências e franquias, ou seja, um olhar não para frente, mas para trás, o que tem tudo a ver com essa leva da última década de cinebiografias, em que mais do que mostrar quem foi aquela figura de interesse ou procurar momentos específicos da sua vida, esses filmes vêm funcionando como longas homenagens estéreis, muitas vezes com a pessoal real (quando viva) ou sua família envolvida na produção. É o tipo de lógica mercadológica que fez um filme como Bohemian Rhapsody ser PG-13, sem sexo, drogas ou qualquer passagem mais controversa da vida de Freddy Mercury, puxando uma moldura a ser seguida pelas obras do gênero depois.
Como um país ensinado a rejeitar sua própria cultura e ter nos Estados Unidos um modelo para chamar de seu, o Brasil importou o modelo e o foi replicando, sobretudo com personalidades da música, como Claudinho e Buchecha, Gal Costa, Mamonas Assassinas e tantos outros, mas também com Mussum, Silvio Santos e por aí vai. O cinema comercial brasileiro vem se tornando essa indústria de replicação de cinebiografias de homenagem, por uma mesma fórmula e quase sempre sem nenhuma criatividade ou preocupação cinematográfica. Ainda que com figuras importantes do imaginário brasileiro, o que esses filme-produtos fazem é justamente matar a possibilidade de uma identificação nacional com o seu próprio cinema, é sentir a partir da estética americana, que pouco se conversa com a nossa realidade, jogando ainda mais para a margem o verdadeiro, ótimo e artisticamente relevante cinema nacional, lugar esse que Fernanda Young - Foge-me ao Controle faria parte, apesar da sua figura conhecidíssima e bastante importante para a produção cultural e televisiva brasileira.
Mais do que isso, e pensando mais uma vez nessa relação cinematográfica entre Brasil e Estados Unidos, fica claro como a cinebiografia encontra uma liberdade narrativa muito mais interessante no documentário, que, ainda que a maioria siga uma padronização tal qual a ficção, é nesse estilo menos popular que alguns poucos cineastas conseguem fazer da homenagem não um problema, mas uma solução. Nesse sentido, o longa de Susanna Lira conversa bastante com duas obras recentes: o americano Moonage Daydream, de Brett Morgen sobre o David Bowie, e o brasileiro Othelo, O Grande, de Lucas H. Rossi sobre o Grande Othelo. O que aproxima bastante essas obras de Fernanda Young - Foge-me ao Controle é justamente a liberdade de transformar os seus cinebiografados em narrativa, uma sucessão de imagens que faz parecer que eles mesmos voltaram à vida e dirigiram essas obras, como se tivessem revelado um eu-interior que conhecíamos de longe, mas não éramos capazes de acessar completamente. São documentários fluídos e livres como seus personagens, fazendo dos diretores reais da obra uma espécie de organizadores, ainda que quem conduzisse realmente a obra fossem aquelas personalidades.
Se o longa de Bowie passava pelas várias fases do artista tendo a consciência da impossibilidade de entendê-lo completamente e o de Othelo transformava aquele ser irreverente e talentoso que víamos nas telas em uma espécie de pessoa real e aberta diante de nós, Susanna Lira tem em sua homenagem um estilo caótico e livre de sequenciar imagens a ponto de nos colocar em um lugar semelhante ao que seria a mente de Fernanda Young. Os programas que escreveu, as poesias que escreveu, a relação amorosa que teve e as muitas participações na TV se misturam em um fluxo de consciência, em um quebra-cabeça fascinante dessa mulher que foi muitas coisas, com tantos pensamentos, reflexões, traumas e vida, criando uma metamorfose entre a Fernanda real e o quanto dela se fazia presente em todo o trabalho artístico e televisivo que produziu. Mais uma vez assim mostrando que talvez o caminho mais interessante para esse gênero tão saturado é menos a visão de Wikipédia, com os fatos da vida de uma celebridade, e mais transformar aquela personagem em si em uma forma de narrativa imagética.