|Crítica| 'Fechar os Olhos' (2024) - Dir. Victor Erice
Crítica por Raissa Ferreira.
'Fechar os Olhos', de Victor Erice
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Víctor Erice trabalha a memória e o tempo dentro da materialidade da imagem e dos espaços que preservam e constroem histórias
Cinemas, cinematecas, museus e asilos, televisores, músicas, rolos de película, livros e fotografias, objetos, formas de arte e espaços que, cada um a sua forma, preservam um pouco da memória e da história do mundo e seus habitantes. Assim como algumas pinturas buscavam captar a essência da realidade, e do momento, e preservá-la, as câmeras tentam há tempos imortalizar um tempo que já morreu enquanto os humanos que as operam, e visualizam seus resultados, perdem dia após dia a capacidade de armazenar mais lembranças em suas mentes. O cérebro, nosso pequeno espaço particular de preservação de imagens, sons e sensações, nunca foi dos mais confiáveis, e para isso as fotos e vídeos poderiam não apenas partilhar o registro com outros olhos, tornando material uma visão projetada apenas internamente, como também o manter além de nossas capacidades físicas. Mas, assim como as lembranças são ferramentas pouco precisas e facilmente transformadas mesmo que sem a intenção de seus portadores, a arte resultante dos instrumentos que captam luz e transformam em matéria, fica à mercê de seu autor e como ele decide que aquele registro será feito. Fechar os Olhos é portanto não meramente uma homenagem com diversas referências ao cinema e sua história, mas uma narrativa repleta de recordações de um homem específico, apaixonado pela sétima arte, em que uma música, um cartaz e outros pequenos lembretes são vestígios da relação de Victor Erice com as obras que fizeram parte de sua vida. Do título, que fala do exercício mais comum de nosso corpo ao tentar lembrar de algo, aos espaços visitados pelo protagonista e o homem que vaga sem registros de sua própria vida, tudo é um atravessamento do tempo que passa pesado, construindo memórias mas também, do medo de as perder.
Há algo grandioso em como Erice exibe o começo do filme de Miguel (Manolo Solo) como início de sua própria obra e encerra ambos simultaneamente. Enquanto no longa nunca terminado estrelado por Julio (Jose Coronado) nunca saberemos o que ocorre entre o pedido do pai e sua morte após finalmente ver a filha, por uma lógica simples de produção do cinema que permite a conclusão das filmagens dentro da mesma locação, tendo o restante nunca sido sequer iniciado, Erice, ainda que comandante de todas as obras dentro de Fechar os Olhos, pode preencher sua narrativa principal com tudo que acontece a partir da busca, até o confronto final da memória material com a mente esvaziada, porém sempre deixando a trajetória de Julio oculta, seja como chegou até se tornar Gardel, no asilo em que as pessoas com poucas recordações vão parar, seja em seu papel de quase detetive em busca da moça que guarda a fotografia. Todos interpretam papéis, afinal já é banal dizer que o cinema é feito de mentiras, mas o que faz essa invenção existir também são verdades muito pessoais e são elas também as responsáveis pelo sentimento que atravessa a tela e conecta espectadores com a obra. Amantes da sétima arte do mundo todo podem reconhecer uma placa que também tem espaço nas prateleiras de suas mentes, como nas de Erice, ou cantar uma música que faz parte de um filme que os marcou como deve ter sido com o diretor e com seu personagem de ficção. Fechar os Olhos manipula os espaços que preservam o tempo, e as formas que existem para tal, para trazer os sentimentos mais verdadeiros que temos com essa relação, tornando a cena final um apelo para que você também feche seus olhos e assista à tela única que possui, em que são projetadas todas as coisas armazenadas em suas recordações.
Esse papo muito sentimental talvez pareça carregado demais, mas a forma como Erice apresenta suas ideias inevitavelmente vai resgatar algo muito melodramático em alguns espectadores, enquanto a outros menos tocados por sua magia, ao que ouvi dizer na saída da sessão, tudo possa parecer cansativo demais. Os closes nos rostos sempre buscam os olhos como uma janela de sentimentos, ou, no caso de Julio, encontram junto à atuação de Jose Coronado um desafio a ser decifrado, seja por sua expressão que pouco revela, ou pela semelhança que buscamos com a imagem de um passado fabricado. O diretor não altera seu ator para o mesmo papel e não o esconde nas cenas, ainda assim, é capaz de construir um mistério acerca da verdade principal, utilizando cada pista como um achado mágico, tanto para nós quanto para os personagens ao seu redor. O protagonista se torna detetive e ao espectador reserva-se a dúvida mesmo quando tudo parece óbvio, pois mora no véu da ilusão cinematográfica sempre uma sugestão conferida ao autor.
Pouco importa, portanto, um atestado conclusivo da identidade de Gardel, o que há com peso é o desaparecimento da memória, o grande espaço vivido impossível de ser resgatado pois não há registro imagético de sua existência, nem na mente, portanto, nem em filme, que ocorre ao mesmo tempo em que outro bom pedaço de vida é relembrado como um bote salva-vidas de outra mente já bastante cansada, em fragmentos e encontros. Se cineastas atuam motivados a imortalizar, histórias ou pessoas, sem imagem não existe memória e sem esta, nunca existiria o cinema, feito a partir de nossas próprias lembranças ou do medo desesperador de as esquecer.