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|Crítica| 'Divertimento' (2024) - Dir. Marie-Castille Mention-Schaar

|Crítica| 'Divertimento' (2024) - Dir. Marie-Castille Mention-Schaar

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Divertimento' / Imovision

 

Título Original: Divertimento (França)
Ano: 2024
Diretora: Marie-Castille Mention-Schaar
Elenco: Oulaya Amamra, Lina El Arabi, Niels Arestrup e Zinedine Soualem.
Duração: 110 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Fugindo de obviedades e buscando a paixão que conecta sua personagem à música, Marie-Castille Mention-Schaar olha com doçura para obstáculos reais

Assim como as cinebiografias têm chegado aos montes e um tanto desgastadas, os filmes que retratam maestros, sejam reais ou fictícios, também vieram em número considerável nos últimos anos. Mas, o habitual é explorar a figura rígida, fria e sisuda que forma um músico clássico tão estudioso e formal, ou a excentricidade da personalidade que é um gênio dessa arte, e, por isso, tem suas particularidades, talvez ambos ao mesmo tempo na maioria das vezes. Tár parece ser o único exemplo em que a protagonista é uma mulher, com toda cara de história real, gerando assim milhares de pesquisas entre os espectadores para entender quem fora aquela maestrina que na verdade, nunca existiu. Assistindo a Divertimento ficam claros os motivos pelos quais Todd Field criou uma mulher para seu filme, esse é um campo machista que não as aceita e são poucas as que conseguem algum destaque. Esse desafio pouco é notado até Zahia (Oulaya Amamra) encontrar a primeira pessoa que ateste isso verbalmente, até então, o recorte escolhido por Marie-Castille Mention-Schaar apresenta ao espectador uma garota sonhadora, bastante focada em seu objetivo, mas, também, muito feliz com sua ligação com a música e seus estudos. Em seu único salto temporal, Divertimento observa rapidamente o momento em que esse amor nasce, com a pequena movendo as mãos em frente à televisão. Então, a diretora se concentra nessa fase primordial, da adolescente que já aprendeu muito, mas ainda tem uma longa jornada, e começa a encontrar os primeiros problemas e preconceitos, desenvolvendo um filme tão bonito que é capaz de captar a paixão pela música como movimento de vida sem precisar sair de sua simplicidade. 

A leveza com que o filme observa Zahia e sua irmã (Lina El Arabi) circularem nos ambientes e exercerem suas vocações, torna quase uma surpresa as primeiras respostas negativas que recebem. Embora estejam nesse espaço elitista e opressivo, as duas jovens são tão apaixonadas pelo que fazem e encontram um acolhimento tão positivo a esse exercício dentro de sua casa que tudo que é externo parece um choque. Marie-Castille exalta esse lar como uma bolha de cumplicidade e apoio, apertando a família de 5 em um pequeno apartamento que não limita suas vontades. Ao contrário do que muitas cinebiografias buscam, principalmente em histórias que envolvem profissões tão rígidas, não há exaltação da dor e das dificuldades, Divertimento as compreende e absorve como parte comum da vida dessas meninas, mas jamais como uma necessidade fundamental para construir caráter. Além de ser mulher (o gênero que configura apenas 6% dos maestros no mundo, segundo o filme), Zahia também é filha de árabes e de uma classe social distante, geograficamente e economicamente falando, de seus colegas de turma. A entrada em uma escola elitista de Paris não a intimida, mas não é pela postura sisuda que Marie-Castille busca construir essa personalidade forte, e sim por uma confiança leve, que vem de toda estrutura bem ambientada no filme, do apoio próximo e da própria paixão que Zahia tem e lhe é suficiente para ser uma profissional capaz. A jovem tem postura e firmeza, mas não se move como os outros, seu corpo exala uma alegria de estar em comunhão com a música e os instrumentos, algo que a mise-en-scène aproveita em uma crescente, até culminar no momento final em que ela está totalmente livre das opressões dos mestres e ambientes opulentos. 

Nem Zahia nem Fettouma são as personagens comuns desses ambientes elitistas da música clássica, é necessário aos outros que elas provem seu valor, mas Divertimento jamais trabalha no desgaste da dor, embora identifique os obstáculos e os homens que as limitam, encontra sempre na beleza uma forma de preencher suas soluções. Quando há a greve no transporte público, a dificuldade em chegar à escola em Paris não vem por uma exploração do esforço que o pobre precisa ter, mas em um suporte do pai ao sonho das filhas. Quando os ricos não se esforçam, Zahia vê a oportunidade de abrir espaço aos colegas com menos recursos e é assim que o longa a usa como veículo para desafiar as desigualdades não somente como mulher, mas para remover a música clássica dos ambientes fechados, arquitetônicos, bem decorados e repletos de homens brancos, e abrir as portas para que ela encontre vida e cor nas pessoas em que não chega normalmente. Não pensando, assim, apenas nos músicos, estes que na cidade em que Zahia mora ainda encontram alternativas para estudarem, mas no público que não tem acesso para consumir essa arte, nas crianças que não encontram pessoas iguais a elas regendo orquestras ou tocando instrumentos. A movimentação das irmãs gêmeas é mais do que um exercício próprio, é uma criação de algo que abre portas a muitos. 

A beleza e leveza com que Divertimento explora a trajetória desse pequeno recorte da vida de Zahia quase nos faz esquecer que isso é uma obra inspirada na vida real de uma mulher que provavelmente enfrentou obstáculos muito maiores, mas é a paixão que move suas mãos que interessa mais a Marie-Castille, e como as duas irmãs transbordaram esse amor pela música e o apoio recebido em casa para fazer com que a arte chegasse a mais pessoas, removendo as paredes que a prendem sempre nos mesmos grupos. Há muita simplicidade em como o filme elabora sua história, nas imagens e narrativa - que até insere um momento ou outro mais piegas na tentativa de abraçar todos seus personagens -, mas a câmera sempre ganha vida quando Zahia se movimenta com felicidade para conduzir os instrumentos, captando perfeitamente algo que é essencial na arte e o diferencial dessas jovens, a paixão. 


 

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