|Crítica| 'O Estranho' (2024) - Dir. Flora Dias e Juruna Mallon
Crítica por Raissa Ferreira.
'O Estranho' / Embaúba Filmes
|
Entrelaçando realidade e encenação, Flora Dias e Juruna Mallon buscam resgate histórico e ancestral do solo de Guarulhos, por diversas abordagens
Para quem vive em São Paulo, parece que o aeroporto de Guarulhos sempre esteve lá, um tanto isolado, um ponto de partidas e chegadas difíceis de acessar, um não-lugar, de pessoas sem rosto, só de passagem. Talvez muitos nem pensem de onde saiu aquilo tudo, ou nem lembrem que na verdade, a construção se deu apenas nos anos 80, não tão distante assim do hoje, mas muito longe de toda ancestralidade daquela terra, das pessoas que ali viveram desde sempre, nas origens, e as que foram removidas para abrir espaço para esse portal de transporte daqui pra todos os cantos do mundo. É nessa linha que Flora Dias e Juruna Mallon passam a introdução de O Estranho por diversos períodos de tempo, de antes da colonização no Brasil até os dias atuais, sempre preservando a natureza em seus quadros, do preenchimento total até a invasão do concreto em seu meio. O fio que conduz grande parte do longa é Alê (Larissa Siqueira), funcionária do aeroporto que parece uma alma antiga, conectada a toda história daquele território, com saudade do que esteve ali um dia, buscando suas raízes nos cenários desaparecidos. Porém, é difícil compreender completamente o que se passa com os personagens nesse espaço por grande parte da duração do filme. Embora nenhuma obra precise ser decifrada, não são enigmas aguardando respostas ainda que muitos espectadores se relacionem dessa forma com o que assistem e alguns autores também, é geralmente quando estabelecemos alguma conexão que permita a compreensão, mesmo que de sentimentos difíceis de descrever, que sabemos que apreciamos um filme verdadeiramente. Aqui, há boa parte que passa como um amontoado de cenas em sequência que só se faz atinar com alguma sensibilidade a partir do momento em que se joga em suas verdadeiras intenções. É como se Flora e Juruna rodeassem o ponto principal com medo de serem diretas demais, buscando uma poética própria que funciona a partir do momento em que a conexão é estabelecida, mas antes parece tão perdida quanto as pessoas que passam sem identidade com suas malas.
Vê-se em Alê muito do que O Estranho quer dizer, essa mulher concentra em si o resgate à ancestralidade e a todos os tempos que a memória da terra carrega, observando através do concreto, da poluição e de cada elemento construído, aquilo que já esteve ali um dia. Pelo texto também, em suas palavras, encontra-se muito da essência dessa obra que propõe tantas reflexões ao espectador, de tudo que não pode ser visto mais, e foi soterrado no passado pelo futuro. Porém, Alê é menos usada do que todo esse seu potencial determina, sua presença se entrelaça a um tanto de coisas que hora parecem apenas um retrato comum da rotina do aeroporto e as pessoas que ali trabalham, existem e vivem e em outros momentos, parecem um filme mais espiritual voltado a algo menos palpável. Assemelha-se em intenção ao maravilhoso filme recente de Paula Gaitán, Luz nos Trópicos, que grandiosamente capta essa viagem de alma pelas américas, da terra ancestral à selva de concreto, porém, O Estranho se concentra em um único pedaço da cidade de Guarulhos e nem todas as suas diferentes abordagens casam-se bem com o que se compreende ao final. Em dado momento, o documentário invade o filme, ainda que em toda encenação se captasse essa realidade latente das pessoas e espaços. Mas ao mostrar a reserva indígena com essas lentes mais diretas e voltadas à entrevista, Flora e Juruna explicitam o que antes estava sendo um tanto escondido. Ao mesmo tempo em que esse processo parece deslocado do restante, ajuda a clarear as coisas e abrir uma porta de compreensão a seus objetivos, tornando a poética e a espiritualidade, mais próximas de quem assiste e até aquele ponto, estava desconectado de tudo apresentado.
O verde é sempre tão presente nas cenas que é fácil esquecer que estamos assistindo a algo atual em um espaço tão urbano, o tempo quase se confunde porque o filme se foca mais no lugar do que nas pessoas, nas mutações daquele pedaço do mundo e por isso, Alê nem sempre tem a oportunidade de conduzir seu papel completamente. Fica um desencontro que só parece dançar no tom certo perto do final, em que personagem e meio cabem e conversam harmoniosamente, finalmente abraçando o mistério dessa natureza e entrando nela sem rodeios, sendo possível sentir o olhar para aquela terra de forma mais complexa, unido aos pensamentos da protagonista que facilita essa compreensão ao emprestar sua percepção. Quando essas peças se encaixam, funcionam de forma a puxarem mais sentimentos e reflexões do que um entendimento, exatamente o que parece o intuito geral do filme, do solo que tem memória e as almas que se recordam de suas origens, então nós, também, iniciamos uma viagem interna com tudo que a obra nos alimentou. Mas esse processo leva tanto tempo a conseguir engatar que dura pouco, até perdura além da tela, mas se torna menos proveitoso por esses entraves no caminho.