|Crítica| 'Clube dos Vândalos' (2024) - Dir. Jeff Nichols
Crítica por Victor Russo.
'Clube dos Vândalos' / Universal Pictures
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A partir de olhares externos, a masculinidade ambígua, tão patética quanto destrutiva, é exposta pelo conflito cinematográfico de Jeff Nichols entre o clássico e o moderno
Se a moto é um símbolo de masculinidade, em grande medida o cinema ajudou a construir isso, com os seus Steve McQueen e, principalmente, Marlon Brando, ao mesmo tempo que Sem Destino adicionou a essa selvageria a liberdade da contracultura. Ainda que essa fosse banhada de ideias progressistas, e o seu movimento cinematográfico, a Nova Hollywood, tratou de questionar os valores de sociedade não só em temas e personagens mais explícitos, mas, sobretudo, ao ir no cinema clássico e reformar os seus códigos (o chamado maneirismo), há um predomínio da visão masculina, como se esse espaço de perigo só o homem fosse capaz de percorrer, mesmo quando esse homem já não é mais aquela idealização indestrutível e poderosa do cinema clássico, ou quando esse homem já se demonstra frágil física e mentalmente, ao passo que as mulheres passam a ocupar outros espaços antes proibido a elas e se libertam, pelo menos em parte, dessa posição de simples objetificação, a “para ser olhada”.
É por essa ambiguidade da masculinidade que Jeff Nichols se interessa, mas não mais de dentro, e sim por um olhar externo. Se, em Sem Destino, a câmera de Dennis Hopper (se é que ele mesmo dirigiu aquele filme, já que muitos afirmam que ele mal parava de pé no set e tudo o que fazia era ofender todo mundo, enquanto outros executavam o seu trabalho) estava ao lado desses personagens vagando com suas motonas e jaquetas pelos Estados Unidos e toda a narração partia do que eles faziam, a ponto da película ser metaforicamente marcada e destruída por suas ações, Nichols, baseando-se no livro fotográfico The Bikeriders, de Danny Lyon (Mike Faist), estabelece uma mediação externa entre personagens e espectador. Esse olhar de fora vai ser marcado sempre por alguém que se fascina, ao menos por um período, por viver naquele mundo, mas não realmente faz parte dele. É uma visão embriagada por essa ambiguidade de questionar e estar rodeado por aquela masculinidade. Então, quando não é Kathy (Jodie Comer) contando a Danny os acontecimentos, tanto anteriores, quanto posteriores à presença do jornalista naquele espaço, é o próprio Danny com o microfone ou a câmera em mãos captando aquela realidade em campo. Dessa forma, Nichols não tem mais a visão de Hooper, muito menos de László Benedek (diretor de O Selvagem, um dos longas que estabeleceu Marlon Brando como esse espírito rebelde, ainda parte do cinema clássico, só que abrindo portas para a Nova Hollywood que posteriormente faria parte), e, sim, um terceiro olhar, que revisa não mais pela modernidade da contracultura, mas por uma percepção contemporânea, que, ainda assim, não deixa de se fascinar e se horrorizar quase na mesma medida com esses homens projetando a própria masculinidade por meio daquilo que lhes foi ensinado pelo próprio cinema.
Todavia, Nichols nunca os satiriza frontalmente, seria um caminho fácil, ingênuo e traiçoeiro demais, correndo o risco de se apaixonar por aquilo que busca inferiorizar. O olhar é de fora, mas é preciso ver de dentro para poder criar qualquer tipo de julgamento, correndo o risco até de cair em certas suposições. A própria criação daquele grupo já detecta, sem precisar rir, o quão patético são aqueles homens, quando o seu líder, Johnny (Tom Hardy), antes apenas um caminhoneiro pai de família, decide criar os Vândalos por ter assistido O Selvagem e se identificado com Brando. O poder do cinema de fazer o homem não perceber a própria fragilidade de sua masculinidade ao se apaixonar e querer ser outro homem, a projeção do ideal que a psicanálise debate há anos a respeito da sétima arte. Não muito diferente, ainda que menos verbalizado ou ridicularizado, está Benny (Austin Butler) em sua clara busca por ser aquela persona rebelde de James Dean. Hardy e Butler não escondem em suas atuações essa tentativa de copiar as projeções, mas eles nunca serão realmente os personagens de Brando e Dean. É o cinema reconhecendo e se inspirando no passado, enquanto se frustra na possibilidade de ser o que já foi, tornando apenas figuras patéticas sem uma real personalidade própria. Todo o grupo de motoqueiros passa por esse processo, encontrando o seu auge em quando mais próximo chegam do ideal da masculinidade do cinema clássico, aqueles valentões que não levam desaforo para casa e botam medo em todo mundo, a ponto de se transformarem em um ideal a ser alcançado pelos jovens, enquanto vivem aquela vida de mentira por anos. É tudo uma fachada que eles não conseguem sustentar por tanto tempo, apesar dos esforços de Johnny. A hombridade rapidamente se mostra destrutiva e fora de controle, o que antes parecia apenas andar de moto com o ronco viciante dos motores e sua velocidade, fazer churrascos, beber e trocar uns socos, passa a se transformar em violência incontrolável, com bares queimados e pessoas sendo assassinadas na calada da noite. Kathy e Danny percebem isso. Ou melhor, sempre souberam, a primeira logo em sua chegada, quando é assediada por aqueles que posteriormente viram pessoas de seu convívio, mas cede ao poder de deslizar pelas estradas na garupa daquela máquina potente, antes de retomar a consciência ainda cedo, mas já tarde demais para deixar aquele lugar. Danny não deixa de se viciar, só que sempre sabe o seu lugar, o que fica claro em como revela ser ele igual ao irmão de Zipco (Michael Shannon), que este acabara de criticar por horas pelo simples fato de fazer faculdade.
É justamente esse conflito entre o passado e o presente, o ideal e o perceptível que Nichols encena com maestria. Ao mesmo tempo que se usa de uma narrativa mais moderna, com quebras constantes temporais, a ponto de não sabermos mais o que está acontecendo em que momento, rompendo com a ilusão do cinema clássico, em que o espectador se iludia acreditando ver um mundo real e se sentia parte dele, o cineasta também recorre ao que há de mais clássico no cinema hollywoodiano para criar seus momentos de mais poderosa dramaturgia e simbolismo. Nenhum exemplo poderia ser usado aqui com mais precisão do que a despedida de Benny e Johnny, um rompimento daquela masculinidade entre o que se permite ir embora e o que não tem mais como fugir, ocorrendo em meio às motos, na pista vazia, mas filmado com um simples plano e contraplano, até que a câmera se fixa no rosto triste de Hardy, sabendo ali que não há mais escapatória, enquanto escutamos apenas a moto de Benny partindo. Quando o plano abre, Hardy é mantido em primeiro plano e vemos Butler longe demais para ser identificável. Sabemos que ele está lá, ao mesmo tempo que já se foi. Não há mais volta.