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|Crítica| 'Rapto' (2024) - Dir. Iris Kaltenbäbck

|Crítica| 'Rapto' (2024) - Dir. Iris Kaltenbäbck

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Rapto' / Imovision

 

Título Original: Le Ravissement (França)
Ano: 2024
Diretora: Iris Kaltenbäck
Elenco: Hafsia Herzi, Alexis Manenti, Nina Meurisse, Younès Boucif e Radmila Karabatic.
Duração: 97 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Com estreia consistente na direção, Iris Kaltenbäck subverte o imaginário da mulher fora de controle e balanceia a narrativa na gangorra emocional de suas personagens

Quem são as mulheres tidas como loucas que conhecemos no cinema? As bruxas más, as ciumentas descontroladas e as amantes psicóticas, são muitos os exemplos, em todos os gêneros, de personagens femininas em que a sanidade mental fora dos eixos se torna motivador das histórias, normalmente colocando homens como destinatários e causadores de seus problemas, ou mulheres a quem elas invejam. Em Rapto, no entanto, Lydia (Hafsia Herzi) subverte esse imaginário se colocando como uma pessoa calma, serena e bastante amável, ao mesmo tempo em que sua solidão, a quietude comum de sua vida e as rejeições que sofre, afetam seu estado psicológico e se acumulam a péssimas decisões que só seriam esperadas de uma mulher fora de controle, uma maluca, popularmente dizendo. O que a parteira tem de muito feminino, na verdade, é o cansaço. Iris Kaltenbäck contextualiza sua protagonista em uma grande cidade, sobrecarregada por um trabalho bastante árduo, de longas jornadas e responsabilidades, sem família e pouquíssimo apoio ao seu redor. Sua apresentação já chega ao espectador com a primeira rejeição, o namorado com quem vivia há anos rompe com ela após uma traição, sua expressão apática ao receber a notícia vem junto de uma exaustão, ela adiava o término já esperado e parte com a mesma energia baixa que carrega durante todo o filme para a festa da melhor amiga, talvez a única pessoa em sua vida agora. A narração, no entanto, é de um homem tentando reconstituir os fatos, observar um passado que ele mesmo não viveu por aquele ponto de vista, então é difícil saber se Lydia é de fato essa calmaria ou se é assim que Milos (Alexis Manenti) a enxerga, com o mesmo afeto que a mulher sempre empregou em suas relações.

Há algo que o narrador relata como se fosse uma confidência trocada entre ele e a protagonista, fora de nossa observação. Lydia e Salomé (Nina Meurisse) eram tão próximas que na amizade de ambas só havia uma dose de felicidade para dividirem, sempre que Salomé estava feliz, Lydia padecia. Essa gangorra emocional dita a lógica do filme, quando é aniversário da melhor amiga, a protagonista sofre com o término e a traição, quando a depressão pós-parto atinge Salomé, Lydia vive os melhores momentos em sua vida inventada com Esmée e Milos, e assim tudo segue. Iris Kaltenbäck coloca o ponto de vista da parteira como principal, embora narrado por outro personagem, para observar a vida dessa mulher em aspectos psicológicos muito sensíveis e negligenciados. A tranquilidade e exaustão de Lydia a tornam alguém carente de um afeto que ela mesma proporciona todos os dias, na forma como acolhe as mães que passam por seu trabalho, em como cuida da pequena bebê de Salomé desde seus primeiros meses como feto, e na própria atenção com a amiga. A fragilidade emocional dessa mulher vem de um lugar de solidão e incompreensão bastante comum, e é nessa linha que Rapto não coloca suas atitudes em julgamento, é criado um laço empático ao perceber que seus feitos não empregam perigo a Esmée, mas depositam amor. No entanto, as mentiras se empilham em uma história maluca que vira uma bola de neve descarrilada que só pode deixar vítimas pelo caminho, não são intenções maléficas de uma vilã, mas atos de desespero de uma mulher cansada e sozinha, buscando carinho e companhia. É possível enxergar na expressão de Lydia que ela sente suas invenções indo longe demais, sem saber como resolver o que começou e, da mesma forma, se deixando levar sempre que essa loucura resulta em pequenos momentos de felicidade. 

Embora os acontecimentos saiam cada vez mais de controle, chegando ao ponto extremo da parteira realmente sequestrar a criança para levar a mentira até as últimas consequências, vê-se sempre no rosto de Lydia alguma consciência retornando, como se seu ideal de família, amor e companheirismo lhe colocasse um véu temporário e a realidade voltasse como um martelo para lembrar que existem pessoas muito feridas no processo. Ela nunca se esquece da dor de Salomé, se entrega e aceita as punições por seus feitos. Por essas lentes, Rapto vê tanto os problemas que afetam Lydia quanto a nocividade de suas mentiras, rompendo com a simplicidade de uma vilania maniqueísta para abraçar a complexidade humana e empática de uma saúde mental fragilizada. É curioso como o longa também brinca com o ponto de vista da narração e de quem assiste, afinal, Milos foi um espectador totalmente enganado que, pego de surpresa pelo final, retornou para reconstruir a história, enquanto nós sabemos desde a primeira vista o que aconteceu ao lado da protagonista.

Essa subversão da “mulher louca” e da vilã que Kaltenbäck constrói bem amparada pela dualidade dos pólos emocionais de suas personagens femininas, é quase um conto de fadas desconstruído. A bruxa má não existe, ela é apenas uma mulher afetuosa e solitária que foi longe demais em suas péssimas escolhas, assim como a mocinha pode ter um ideal de vida perfeita, mas também tem seus defeitos e negligências com a amiga e o que seria um tipo de principe, que só queria um sexo casual, nada tem de encantado, mas ainda assim, enxerga pelo mesmo viés que nós, espectadores, algo bom a ser perdoado em Lydia, ao ponto de não ser capaz de a deixar totalmente só em seu caminho de volta. 

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