|Crítica| 'Assassino Por Acaso' (2024) - Dir. Richard Linklater
Crítica por Victor Russo.
'Assassino Por Acaso' / Diamond Films
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Richard Linklater faz a comédia maluca se metamorfosear junto ao seu protagonista, dentro de uma encenação sagaz que vai desconstruindo a realidade e criando uma nova pelo amor e pelo desejo
Quem somos nós? Existe um verdadeiro eu ou mudamos de acordo com as situações e pessoas que nos relacionamos? É possível uma pessoa mudar? É possível uma pessoa mudar por amor? Tais perguntas genéricas estão já na premissa de Assassino Por Acaso, mas são moldadas por um cineasta astuto e um texto esperto para se transformarem em algo muito mais interessante. Richard Linklater nunca recusa essa simplicidade que geralmente faz a comédia ser vista como um gênero “menor artisticamente”, ao lado de Glen Powell (que, além de protagonizar o filme, escreve o roteiro junto a Linklater), o diretor vai no mais clássico da comédia romântica, a screwball comedy (geralmente traduzida como comédia maluca) que dominou a Hollywood dos anos 1930 e 40, com filmes que geralmente formavam casais com um homem protagonista e uma mulher não muito convencional no cinema daquele período. Muitas vezes, eram as ações dela que o faziam mudar, sempre dentro de um senso de agilidade que esses filmes tinham, com um texto rápido e acontecimentos constantes. Esses são os códigos de gênero que fazem o longa nascer e o permeiam de alguma forma durante toda a projeção, mas, Linklater e Powell são astutos o suficiente para não se manterem presos a essa comédia, e, sim, ir se modificando e se fundindo a outros gêneros no processo.
Assim, o desejo ardente que exala entre Gary (Powell) e Madison (Adria Arjona) pode não ser visual na exibição de corpos como os thrillers eróticos dos anos 1980 e 90, mas todo o calor pulsante desse tesão insaciável está ali presente, na forma de falar, de olhar, de flertar, de andar e de se tocar, um jogo de sedução que começa lento e provocativo até se tornar pulsante e carnal. A própria personagem de Madison está muito mais para uma femme fatale do cinema noir em como conduz o protagonista por meio dessa atração física do que das personagens da comédia maluca, que geralmente colocavam esses personagens em ciladas constantes até que finalmente se apaixonassem. No caso de Madison, Gary compra esse jogo desde o início, transformando-se em uma espécie de protagonista do noir que acredita estar no controle da situação, enquanto, na verdade, está sendo manipulado até praticamente não ter saída.
Dessa forma, o longa parte de uma apresentação cômica quase como um prólogo, apresentando esse personagem e como suas caracterizações funcionam para ele psicologicamente, ao passo que o maior interesse de Linklater nesse primeiro momento está em como cada uma dessas personalidades criam curtos momentos cômicos. A premissa, presente nas perguntas do primeiro parágrafo, parte de uma obviedade, mas a esperteza do cineasta está em não fazer dessas transformações um filme metido a espertinho, como é extremamente comum sobretudo nas sátiras hollywoodianas contemporâneas que tiram sarro de forma inofensiva da indústria, mas a apenas um ponto de partida, enquanto as verdadeiras metamorfoses estão presentes na encenação. É um filme que está, na verdade, se modificando a partir do momento que o protagonista para de trocar de personalidade, ou seja, quando se identifica e passa a ser Ron. Ao se estabilizar em um única caracterização e passar a vivê-la intensamente, a diferença entre real e atuação se quebra, Gary e Ron se fundem, e, só aí que Assassino Por Acaso realmente começa a se desenvolver. Mais do que isso, é justamente nesse momento que o longa realmente sutilmente vai se transformando, enquanto gênero, sendo puxado por essa mistura de comédia screwball e noir, que são marcados por essa perda de controle do protagonista, fazendo-o mudar e tomar decisões que teoricamente não estavam presentes no “eu” inicial, ao mesmo tempo que a mise en scène se reconstrói no processo, abandonando aquela comédia mais marcada das primeiras sketches, o que só retorna quando o filme volta para a delegacia e com os personagens que só aparecem nesse contexto, e vai virando uma comédia que se apropria de códigos do thriller, ao colocar esse personagem para tentar se desvencilhar de situações que o compliquem, enquanto, no final, isso só o joga para mais problemas e o obriga a tomar um decisão final definitiva, o momento em que o seu “eu inicial”, Gary, é morto por completo, e só sobra o seu “novo eu”, Ron, que, ao mesmo tempo, não é mais aquele “primeiro Ron”, e, sim, uma nova versão, modificado não mais pelo desejo, mas pelo amor, fazendo de todo esse jogo de transformações cômicas ou desesperadas, no fundo, parte de outro gênero, o romance, que finalmente descarta o thriller erótico e se apresenta como a definição final.
Nesse jogo de transformações, não só o texto sustenta as mudanças, mas cabe também à dupla principal conduzir esse show em direções quase opostas. Enquanto Powell é o objeto de alteração constante em busca de um “novo eu”, como diz literalmente em alguns momentos, a partir até do voice over (outro recurso narrativo típico do cinema noir), Arjona é a figura enigmática, com alterações imperceptíveis a um primeiro momento, já que, como uma femme fatale, não sabemos quem ela realmente é, o que pretende, quais suas verdadeiras intenções e o quanto de maldade ou oportunismo tem aí. Cabe aos atores, em suas interações, irem fundindo esses opostos até gerar essa aproximação, finalmente evidenciando quem são esses corpos e personalidades em sintonia após a tormenta.