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|Crítica| 'A Musa de Bonnard' (2024) - Dir. Martin Provost

|Crítica| 'A Musa de Bonnard' (2024) - Dir. Martin Provost

Crítica por Victor Russo.

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'A Musa de Bonnard' / Califórnia Filmes

 

Título Original: Bonnard, Pierre et Marthe (França)
Ano: 2024
Diretor: Martin Provost
Elenco : Vincent Macaigne, Cécile de France, Anouk Grinberg, Stacy Martin e Grégoire Leprince-Ring.
Duração: 122 min.
Nota: 2,0/5,0
 

A escolha de Martin Provost por ter Marthé e não Pierre como protagonista, não passa de um truque barato que nada altera a dinâmica comum a esse tipo de filme e é rapidamente traída por não centrar apenas um olhar

Como o país que esteve historicamente na vanguarda de praticamente todas as artes, inclusive do cinema por muitas décadas, o cinema francês não cansa de olhar para o passado, para o luxo, a elite, a boemia e os artistas de séculos atrás, seja como cinebiografias de pessoas que existiram (o mais comum) ou mesmo criando novos personagens e situando-os nesse período amplamente idealizado. Só que, apesar de falar do talento artístico pretérito, tais obras, em sua maioria, seguem um formato bastante industrial, aquela repetição de cenários, figurinos, uso de lentes, estrutura de roteiro e por aí vai. A Musa de Bonnard vem para se situar no primeiro dos dois pólos, ao retratar pessoas reais, como Marthé de Méligny (Cécile de France) e Pierre Bonnard (Vincent Macaigne), enquanto ficou esquecido fora da competição no mesmo Festival de Cannes em que O Sabor da Vida, longa com personagens ficcionais, venceu o Prêmio de Melhor Direção (Tran Ahn Hung) na competição.

A comparação entre os dois é um bom ponto de partida, não só para observar a condução das duas obras, mas também a honestidade com que trata suas musas. Enquanto Hung centraliza o romance de forma equilibrada, mas tendo Dodin Bouffant (Benoit Magimel) como protagonista, enquanto Eugénie (Juliette Binoche) funciona como sua parceira, ajudante, musa, mas, acima de tudo, como alguém que compartilha com ele toda aquela paixão, enquanto Hung constrói a beleza por meio da encenação dessa comida sendo preparada, Provost escolhe uma narrativa bem mais convencional, típica das cinebiografias francesas ou americanas, com uma série de elipses temporais e enfoques em alguns momentos específicos da vida dos personagens. Só que, ao invés de ter como protagonista Pierre Bonnard, o artista e nome mais conhecido do longa, Provost segue uma linha mais semelhante à de Kirill Serebrennikov em A Esposa de Tchaikovsky, ao deslocar o protagonismo para a esposa do artista e, a partir do ponto de vista dela, desconstruir o mito para focar na mulher ao lado dele, como uma forma de mostrar quem a história esqueceu e sofreu nas mãos daquele homem idolatrado. A diferença, porém, está na habilidade de Serebrennikov não só de encenar, adotando um tom até fantasioso em muitos momentos, mas de fazer um filme realmente sobre aquela mulher acima de tudo, enquanto vilaniza o grande artista. Provost parece acreditar estar fazendo a mesma coisa, só que, na verdade, apesar do protagonismo, não há nada muito diferente aqui dos Maestro, Johnny e June e tantos outros longas americanos dispostos a retratar um ídolo problemático ao lado de uma esposa santificada.

Entretanto, por pior que seja o longa de Bradley Cooper e a representação da personagem de Carey Mulligan seja extremamente problemática, ainda há uma honestidade maior no filme da Netflix, a partir do momento que em nenhum momento ele sugere que o objeto de importância não é Leonard Bernstein (vivido pelo próprio Cooper). Já Provost parece acreditar realmente estar fazendo uma obra transgressiva, hiper feminista, quando, na verdade, suas próprias escolhas o traem o tempo todo, sobretudo pela incapacidade de entender a sua protagonista e como representá-la. Por mais que tenha algumas amarras por se basear em fatos reais, a obra de ficção permite ao criador tomar uma série de liberdades, assim como Serebrennikov se utilizou muito bem. Poderia ser um filme pelo ponto de vista de Bonnard, diminuindo seus problemas de caráter, como é muito comum nas cinebiografias de homenagem americana, poderia ser uma obra sobre Marthé e sua libertação daquela figura opressora apesar de aparentemente boba, poderia ser um filme sobre a personagem em si em um recorte que realmente se interessasse em se aprofundar na personagem, como Provost até acredita estar fazendo. Poderia ser muitas coisas que não nos cabe criticar, mas o que vale aqui é o que o cineasta realmente propõe. 

Assim, o que na prática é desenhado em tela, para além da encenação meio padronizada de filme de época francês, é um falso protagonismo de Marthé. Sim, ela é a protagonista do longa, é a história dela e não a de Pierre que está sendo contada em primeiro plano. Mas Provost não tem a coragem de fazer o filme apenas sobre ela. Mais do que isso, ele se recusa a fazer o que Serebrennikov fez com Tchaikovsky e motivos aqui não faltavam, assim como a figura muito menor historicamente de Pierre Bonnard permitiria isso com muito mais facilidade. Por mais que o longa até tente vilanizar Pierre e exaltar Marthé, na realidade, o pintor nunca é completamente detestável frente à câmera, ele soa ingênuo na interpretação meio tímida e cabisbaixa de Macaigne, como se ele não traísse e abandonasse a esposa por maldade, enquanto a única forma que Provost encontra de mostrar a personagem de De France é como uma santa e uma mártir, não muito diferente da representação mais tradicional das esposas em cinebiografias de artistas homens. Ela não existe por conta própria, ela se apresenta como alguém destinada a sofrer, e sofrer, e sofrer, para no final perdoar, demonstrando não só sua bondade santificada, mas também isentando a maldade do artista e permitindo que o amor deles supere tudo para ficarem juntos ao final. Marthé não vai além da musa, daquele ser que é observado, assim como Pierre a enxergava, mas que nunca detém um real interesse humano. Ela casa quando ele permite, não tem filho porque ele não quer e até quando se expressa, com seus quadros, é porque está indignada com ele, tendo, ainda, como consequência seu momento de glória, a exposição, tirado de si por causa de Pierre. Só que, toda essa traição de Provost para com a sua proposta é ainda mais acintosa em quando percebemos como ele conduz essa narrativa e por qual ponto de vista. Apesar do interesse ser supostamente por Marthé, o longa em nenhum momento se mantém restrito a ela. Ela pode perceber que vai ser traída, mas Provost faz questão de se deslocar para Roma junto a Pierre e mostrar a traição, diminuindo assim ainda mais o protagonismo da personagem, que vira uma mera ideia, apenas um objeto para ser visto, enquanto tem o seu real protagonismo sutilmente tirado de si por como o cineasta decide contar essa história.

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