|Crítica| 'Jardim dos Desejos' (2024) - Dir. Paul Schrader
Crítica por Victor Russo.
'Jardim dos Desejos' / Pandora Filmes
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Paul Schrader intensifica a complexidade de seu protagonista bressoniano em uma dinâmica rigorosa de espaço e tempo
Como um bom maneirista que é, sempre olhando para o cinema de crime e, sobretudo, para os filmes de Robert Bresson, Schrader faz do jardim e da arte da jardinagem uma espécie de olhar místico para o seu próprio cinema. Se o protagonista (Joel Edgerton) fala sobre a jardinagem ser a arte mais fácil de todas por já estar lá, o cinema enquanto uma arte que se apresenta como a realidade frente a câmera poderia ser observada por um prisma semelhante. Só que, como na introdução em voice over, que fala sobre a história dos jardins e jardinagens, o cinema vive não da originalidade, mas de um novo olhar sobre aquilo que já existe. Dessa forma, Jardim dos Desejos surge como um típico filme do cineasta, acompanhando esse protagonista atormentado pelo passado e buscando redenção em meio a uma vida pacata até que é levado de novo a agir de forma violenta. Nesse sentido, Maya (Quintessa Swindell) funciona de forma semelhante aos personagens de Amanda Seyfried (Fé Corrompida) e Tye Sheridan (O Contador de Cartas), sendo uma espécie de híbrido dos dois, do primeiro enquanto interesse amoroso muito mais jovem do que o protagonista e do segundo ao ser colocada nessa posição de aprendiz. Ao mesmo tempo, o próprio longa parece aproximar o protagonista mais dos dois filmes anteriores do que dos outros personagens com narrativa semelhante de outros longas da carreira do cineasta, trazendo a frieza e a relação metódica de sua profissão e para com a natureza de Ethan Hawke, associado a uma certa brutalidade perigosa implícita de Oscar Isaac.
Entretanto, dessa recorrência de elementos e combinações, Schrader cria algo novo, que em algum sentido conversa com o seu próprio cinema e discute o quão ultrapassado ele é colocado nessa dinâmica hollywoodiana atual, criando conflitos entre gerações de poder e inutilização do que vai ficando mais velho, mas, principalmente, ao voltar o seu olhar de forma ainda mais ambígua para a natureza, seu objeto de interesse maior em Fé Corrompida. Esse conflito parte justamente entre uma fantasia implícita naquele espaço, que parece alheio ao mundo lá de fora, e se torna ainda mais evidente na sequência que os personagens fantasiam um belo jardim colorido se construindo como um sonho fora do carro, e como isso parece distante do rigor formal que o longa emprega, nas suas cores e luzes mais sóbrias e naturais, a ponto dos personagens estarem constantemente usando uniformes parecidos, sendo ameaçados justamente por aquela (Sigourney Weaver) que se veste e constroi sua casa por dentro de forma mais viva e colorida, em tons destacados de azul no espaço, e vermelho na vestimenta. É perceptível, inclusive, o desconforto de Maya ao vestir aquele vestido amarelo, que arranca na primeira oportunidade após tudo dar errado.
Mas esse rigor que aproxima o filme do mundo real, sobretudo quando os personagens deixam aquela redoma fantasiosa, o que permite ao que vem de fora adentrar aquele espaço e profanar sua terra, vai aparecer também na condução narrativa do longa, da escolha temporal e da frieza dos personagens, até o uso pontual do voice over e, principalmente, dos flashbacks, que revelam esse passado do personagem apenas em eventos para que entendamos a conjuntura atual, sem nos permitir realmente adentrar nessa culpa e no que motivou o protagonista a abandonar sua seita neonazista, traindo-a e rejeitando todos aqueles valores que um dia dedicou sua vida. Nesse lugar, inclusive, a ambiguidade se faz mais uma vez presente, tornando o personagem de Edgerton o protagonista mais complexo do cineasta. Ao mesmo tempo que adota um tom até meio moralista, que posteriormente vai ser levemente contradito, ao falar sobre as drogas, Jardim dos Desejos não faz questão de dar respostas fáceis sobre como agimos em relação a um neonazista arrependido. Seria possível perdoar uma pessoa que cometeu tais atos? Ele dobra a aposta ao colocá-lo para rejeitar a mulher mais velha e ter relações com a sua aprendiz, muito mais jovem e negra. É em Maya que esse conflito se faz presente, numa repulsa odiosa àquilo que ficou marcado pelo passado do personagem e um desejo por essa nova semente que nasce do amor entre os dois. Mais uma vez, Schrader não busca respostas fáceis, e, mais do que isso, cria uma provocação ainda maior ao situar tal conflito moral em tempos de um cinema visto muitas vezes como objeto meramente educacional. É bom ver que ainda existem cineastas que se propõem a desafiar o seu público.