|Crítica| 'Às Vezes Quero Sumir' (2024) - Dir. Rachel Lambert
Crítica por Raissa Ferreira.
'Às Vezes Quero Sumir' / Synapse Distribution
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Trama e encenação apática de Rachel Lambert busca inspiração kaufmaniana para lidar com a saúde mental e o afastamento social contemporâneo
Daisy Ridley não fez grande carreira pós Star Wars e provavelmente Às Vezes Quero Sumir lhe veio como uma daquelas oportunidades de mostrar o talento de sua atuação, visto que o teor dramático de sua personagem tem potencial para destacar seu trabalho. Na verdade, é uma ação conjunta em que tanto Rachel Lambert precisa coordenar sua visão criativa para estabelecer esse mundo apático e sem vida, que é um extensão da mente de Fran, quanto cabe a Ridley carregar na mesma proporção esse vazio existencialista. Ambas funcionam bem juntas durante a introdução, a proposta da diretora é bastante kaufmaniana, busca um estranhamento pela mise-en-scène claustrofóbica dos espaços sociais, observando as inquietudes da interação entre humanos e mentes que não se encaixam, porém, existe uma grande dificuldade em Lambert de ir além disso e construir algo próprio que não passe de um filme apático girando no mesmo eixo criativo. Por grande parte da obra, a protagonista não solta nenhuma palavra, a rotina bastante triste segue um escritório de divisórias, mouses com fio e paredes claras em que poucas pessoas fingem algum interesse para que seus dias não sejam tão deprimentes, mas Fran não, ela se movimenta sempre quieta, tímida, com dificuldade de existir naqueles espaços, pouco tem a fazer em sua própria casa, come coisas sem graça, segue uma existência sem sal e pensa constantemente em morrer, não em como o faria ou aconteceria, mas em seu corpo já sem vida largado aos insetos. A chegada de uma nova pessoa a desperta a outras vontades e emoções, traz alguma pouca cor à encenação lavada do longa, blusas mais avermelhadas, interações sociais, enfim, a narrativa insere um homem que movimenta as coisas, mas não altera sua lógica apática e sofre para construir algo que dê corpo e visão a esse marasmo.
Para Rachel Lambert, lidar com sua estética como extensão da saúde mental da personagem é basicamente manter tudo desinteressante, o que faz todo sentido até certo ponto em que o desenvolvimento da trama de Fran parece totalmente estagnado pela encenação. A personagem vê necessidade de movimentação, o interesse por Robert (Dave Merheje) a faz querer ir em festas, colocar roupas com alguma coloração, assistir filmes, comer tortas, enfim, agir. Mas, quando a relação entre os dois emperra nas limitações de Fran, o longa se deita com ela no chão, há um sofrimento na protagonista, ela diz o que pensa rapidamente, sente os efeitos disso, tenta se redimir, em suma, sua narrativa acontece, mas o longa segue apático, duro, limitado em sua proposta de ser distanciado, esquisito, deprimido, preservando tudo exatamente como estava lá no começo, mesmo que a situação já tenha se alterado pelas próprias escolhas do texto. A saúde mental de Fran pode ser a mesma, a depressão ou o que for que a mantenha dessa forma, talvez a condição da sociedade contemporânea em si seja suficiente para que as pessoas existam nessa solitude vazia, seja lá o que for, ainda está lá, mas a fagulha que Robert acende nela é uma transformação pouco refletida no restante. Daisy Ridley segue então os acontecimentos da mulher girando no mesmo eixo, ao invés de morrer no mato apodrece na praia, tudo continua triste igual, sua voz, seu rosto, seu jeito de agir e os espaços ao seu redor.
A consistência de Rachel Lambert não é completamente sem sentido, mas pouco faz por sua personagem e sua obra em si, aponta para uma profundidade maior, pelos temas e estética, do que consegue atingir. Há evolução, tanto que seu maior indicador é Fran dividir com Robert ao final o que sua mente partilha com o espectador apenas em imagens inquietantes, mas parece um descompasso injusto o que a condução cinematográfica faz com ela em relação a sua progressão textual. Por vezes é como se Lambert quisesse apenas estabelecer um fetiche pela imagem artística, desse tom independente, alternativo, do estranhamento e distanciamento, querendo atestar alguma visão criativa pautada em suas referências - embora, para um filme com um cinéfilo seja bem esquisito só citar um nome de filme em toda a obra -, mas pouco se vê de algo próprio e autoral, a fotografia, a encenação, tudo isso não tem cara e marca, até mesmo as cenas em que Fran se imagina morta soam retiradas de outros filmes que buscam o mesmo sentimento, só que mais lavadas, então o jogo que precisa ser entre as duas mulheres (na maneira mais simplista de se colocar, é claro) se desequilibra.
Muitas imagens parecem buscar mais uma beleza poética do que construir narrativamente qualquer coisa que seja, ângulos deslocados, planos de desconforto, isolamento e afins, se repetem sem convidar o espectador a nada além de uma contemplação estética de conceitos que já foram bem estabelecidos da mesma forma anteriormente. Ridley até faz um bom trabalho dentro da proposta, sem receber em troca uma obra que a acompanhe no que parece uma maior vontade da diretora em se valorizar como criadora, alguém com visão e sensibilidade, do que de realmente criar um filme a partir de suas ideias.