|Crítica| 'Furiosa: Uma Saga Mad Max' (2024) - Dir. George Miller
Crítica por Victor Russo.
'Furiosa: Uma Saga Mad Max' / Warner Bros.
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George Miller busca o conflito pequeno em meio ao épico para ampliar a mitologia da personagem, mas continua tendo no movimento e na imagem uma forma de se comunicar por meio das emoções
Nove anos depois de retomar a franquia com Mad Max: Estrada da Fúria, George Miller retorna com um prequel do quarto filme, uma espécie de spin-off para ampliar a mitologia em torno da Imperatriz Furiosa. A comparação óbvia com o excepcional filme de 2015, o melhor da franquia e um dos grandes do gênero, era o desafio a ser percorrido pelo cineasta, ainda mais tendo em vista que o longa anterior já era protagonizado por Furiosa. A sacada aqui então está em justamente ter a consciência de que aquele mundo já é familiar, mas desacelerá-lo para olhar por uma nova perspectiva, o que vai resultar em um início e sobretudo no conflito final sendo resolvidos de forma muito mais íntima e menos épica, algo que o próprio cineasta brinca ao colocar Dementus questionando sobre a capacidade de fazer algo épico. Assim, a expressividade determinada, tanto de Anya Taylor-Joy, quanto de Alyla Browne, que vivem a personagem em diferentes momentos desses 15 anos, mostra uma capacidade de aproximação com o espectador que raramente é foco na franquia.
Ainda assim, por mais Furiosa seja o foco e seus conflitos ganhem espaço por sua própria ótica (enquanto no longa anterior era Max quem olhava para ela), Miller combina essa intimidade com a personagem, que vemos desde pequena até encontrar a vivida por Charlize Theron, com o prazer pela imagem e o movimento, a ação diante dos nossos olhos como a melhor forma de comunicar acontecimentos, situações e, principalmente, emoções. Se a personagem escolhe não falar durante boa parte, por um lado é uma forma de proteção para um mundo que não aceita mulheres, por outro, é o próprio cineasta ressaltando o quão desnecessário é o diálogo quando se tem a capacidade de fazer a imagem falar por si só. Imagem e movimento, ou melhor, imagem em movimento, o que faz do cinema uma arte única e Miller entende como poucos as melhores formas de nos manipular por meio dessa combinação.
Dessa forma, Furiosa entende o seu papel na franquia e Miller o destaca sem precisar dizer muito. Se Estrada da Fúria parecia um hiperativo futurista da trilogia inicial, não só mostrando um mundo ainda mais louco e decadente, como o próprio diretor se utilizando de recursos técnicos, como o digital, para hiperestilizar aquele frenesi, por meio de filtros super saturados, que se assemelhavam ao tingimento na película do primeiro cinema, tendo, por exemplo, uma noite que tinha apenas tons de azuis, com outras cores surgindo apenas quando algum personagem acendia algum fogo ou luz, ou de uma câmera que ganhava vida própria para percorrer aquela ação, acelerando-a e se aproximando ou afastando de forma ligeira, enquanto a trilha sonora gritava e só cessava nos poucos respiros, Furiosa surge como um intermediário. Por um lado, muitos personagens do anterior retornam mais jovens, assim como essa ação que fala por si mesma, que quando começa parece impossível acabá-la, enquanto carros se destroem, tiros e fogo dominam e o barulho de metal e a trilha sonora compõem essa sinfonia maligna. O uso do digital e dos filtros também se fazem presentes, até como um jogo da mise en scène em muitos momentos, como sinalizador vermelho que passa a caracterizar Dementus. Entretanto, a hiperestilização é um tanto mais dosada, a trilha some durante boa parte do tempo, o laranja e o azul aparecem menos saturados e até a ação que é o mais dominante da obra não é tão constante. É quase como se Miller estivesse nos situando mais uma vez no tempo a partir de suas escolhas de mise en scène, inclusive com muitos dos objetos de cena e artifícios de guerra que aparecem aqui e são inutilizados em Estrada da Fúria, seja por ineficiência ou resultado da guerra que se instala. Só que essa leve pisada no freio, que ainda mantém o spin-off mais próximo do quarto do que dos três primeiros, de forma nenhuma representa um retrocesso, e, sim, um novo caminho que se abre para essa personagem que vai crescendo sem falar, resolvendo tudo enquanto o pau come, por coincidência, obstinação e inteligência.
Retornamos então a Miller como o condutor dessa franquia e como a paixão por manter esse universo por cinco décadas é o que realmente o faz seguir funcionando e ampliando a mitologia. Longe das sagas de estúdios, que passam por muitas mãos e precisam ficar se arrumando com desculpas pelo caminho, apesar dos nove anos de distância, parece que Furiosa já existia em sua mente quando Estrada da Fúria foi concebido. Por mais que o diretor se assemelhe a um fã, daqueles bem nerds, em como estabelece cada gadget, dos veículos às armas e suas combinações de ataque e defesa, dos grupos e seus funcionamentos, passando por uma dinâmica bastante única, ele nunca permite que sua paixão pela criação vire ingenuidade ou fetichismo. Se Furiosa e Estrada da Fúria se fundem como um só é justamente porque não há alarde para as perguntas que ficavam no ar. Ela perde o braço, raspa cabeça e sobe na hierarquia de Immortan Joe, mas nada disso é ressaltado como se convencionou nos filmes de heróis e franquias blockbusters recentes, não há aquela piscadinha para o fã se sentir contemplado e sentindo especial por ter entendido. O fã da saga Mad Max contempla o espaço e ação, e é justamente nessa sucessão de acontecimentos e imagens que todas essas respostas surgem, de forma tão natural quanto é Furiosa para Estrada da Fúria.