|Crítica| 'O Sabor da Vida' (2024) - Dir. Tran Anh Hung
Crítica por Victor Russo.
'O Sabor da Vida' / Diamond Films
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Com uma câmera sempre em movimento, Tran Ahn Hung constrói uma orquestra da paixão compartilhada
Não importa o quanto se busque, a maioria das pessoas nunca será capaz de encontrar alguém para amar que seja apaixonada pelas mesmas coisas. Frases populares como “os opostos se atraem” reforçam essa descrença do ser humano pelo compartilhamento, instalando um conceito do relacionamento de seres com diferentes interesses, mas que ficam juntos porque não é necessário procurar por um igual. As poucas pessoas capazes de amar alguém que também dedica a vida à mesma paixão percebem a possibilidade de um novo olhar para o amor. Hung vê valor justamente nessa relação que faz de uma obsessão algo sublime, indescritível.
Desenvolve então uma mise en scène sofisticada, como se cada movimento de câmera suntuoso fosse uma declaração de amor. Essa condução minuciosa olha para a comida sendo feita com esmero, para a dedicação apaixonada em cada tempero, cada panela, molho, carne, caldo. A cozinha se transforma em lugar sagrado, a preparação para um evento quase religioso. Uma vida dedicada à comida, como uma arte que domina aquele casal, embriagados e conduzidos a manipular os alimentos, como artesãos, funcionando em sincronia, como a decupagem de Hung que torna essa movimentação uma dança apaixonante. Esquecemos onde estamos, nos entregamos, devotos, àquele espaço, a uma encenação que esbanja uma beleza sutil, um sentimento indescritível do compartilhamento. Tudo é mostrado com esmero, como se a vida daqueles personagens só existisse naquele lugar, mudando o seu mundo a cada novo prato.
Pode parecer algo ingênuo, vazio até, pensar na comida como o definidor de um longa-metragem. Um romance no século XIX que se passa quase todo dentro de uma cozinha, no mínimo inusitado em uma época que condicionou o público a filmes que precisam “dizer algo relevante”. Hung não se rende, acredita ainda em um cinema apaixonado, nas sensações que abraçam o espectador e o transportam para fora de seu corpo. Juliette Binoche e Benoit Magimel transpiram essa paixão em cada olhar e movimento, são tão devotados um ao outro quanto são ao prazer de cozinhar. Não existe amor sem gastronomia, não existe gastronomia sem amor. O maior gesto vem justamente da revelação pelo alimento, não poderia ser de outra forma. O “pouco complexo” se transforma em uma profundidade de um romance de compartilhamento. Como seguir em frente sem o outro? Como desempenhar aquela paixão de toda uma vida sem a companhia que fez dessa arte uma completude diária?
Hung encontra em Binoche e Magimel um casal que transpira essa paixão, sem precisar dizer quase nada, em um filme que realmente pouco fala por durante muitas sequências, mas é capaz de explodir esse amor de forma sutil, seja em um olhar, seja na confiança de deixar o outro fazer determinado prato, seja em cada movimento de câmera, nem muito rápido, nem muito devagar, mas com a velocidade e exposição do espaço correta para fazer da câmera uma observadora que carrega paixão. É essa mise en scène sempre em movimento que floresce e ressignifica o amor inexplicável. É o poder do cinema de não precisar descrever, mas captar sentimentos pela imagem em movimento diante de nós. Como um maestro, Hung guia não mais a câmera, não mais dirige os personagens ou encena aquele mundo diante de nós. O forte sentimento entre o casal possui a câmera, enquanto o cineasta conduz o amor, a câmera se transforma em um aparato que carrega em si a paixão de uma forma impossível de se desvencilhar.