|Crítica| 'A Paixão Segundo G.H.' (2024) - Dir. Luiz Fernando Carvalho
Crítica por Victor Russo.
'A Paixão Segundo G.H.' / Paris Filmes
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Luiz Fernando Carvalho não domestica o cinema, faz dele uma nova forma de lidar com as outras artes por meio de uma potencialidade própria
O cinema não é chamado de “a sétima arte” à toa. Isso é resultado de um surgimento tardio, quando muitas formas de expressão artística já estavam consolidadas há muitos séculos. Inventado com a visão de apenas captar a realidade de forma mais real, por conta da ilusão da imagem em movimento, o cinema demorou ainda mais tempo para se sedimentar como uma arte e foi-se por muito (em algum sentido é até hoje) vista como a que carrega o peso de representar o real (e até hoje suas técnicas são desenvolvidas com essa finalidade: efeitos digitais, como cenários em computação gráfica, captação de movimento, 3D e Deep Fake são pensados quase sempre com o objetivo de gerar o real). O cinema já nasce então com esse peso das artes predecessoras, é diminuído frente a elas (perceba como muita gente assiste a filmes pensando apenas na história e no texto, como na literatura, e não percebendo a imagem e o som, características próprias do cinema) e serve constantemente como palco para adaptações, sobretudo de livros, músicas e peças de teatro.
Nesse sentido, “A Paixão Segundo G. H.”, de Clarice Lispector, não se apresenta apenas como mais uma adaptação da literatura, mas como uma daquelas obras consideradas por muito tempo inadaptáveis. Se esse pensamento geralmente, como em “O Senhor dos Anéis”, “Duna” e “Fundação”, é fruto da grandiosidade de um universo, tanto em tamanho (e dependência de novas técnicas, tanto que essas adaptações só vão ser concretizadas de forma mais agradável com a evolução dos efeitos digitais), quanto em complexidade de conceitos, a obra de Lispector sempre carregou essa percepção por seu intimismo “pouco cinematográfico”. Como adaptar um monólogo de uma mulher em crise consigo mesma para as telas sem soar “literário demais”?
É aí que Carvalho entra na equação, um cineasta de poucas obras, mas que sempre teve no cerne do seu fazer audiovisual o pensamento imagético para adaptações da literatura. O diretor não pensa no cinema apenas como uma transposição do texto para a tela com imagens que apoiam o escrito. Não faz do cinema também um veículo para a mudança do que já está feito. Ele parece entender o peso da literatura e das obras que escolhe adaptar, assim como conhece as particularidades do cinema como arte, fazendo de seus filmes e obras para a televisão um aproveitamento do que há de mais forte nas duas artes. Ele funciona como um cineasta maneirista (diretores, como Brian De Palma, conhecidos por olhar para o fazer cinematográfico anterior e exagerá-lo, fugindo apenas da referência e criando algo novo a partir desse cinema que carrega o peso do passado, mas não se aceita como mera homenagem), só que o faz não em relação ao próprio cinema, e, sim, olhando para as demais artes. Ou seja, não sente o peso do cinema anterior, mas das artes pretéritas ao cinema.
Assim, “A Paixão Segundo G. H.” vira um filme de abordagem, do pensar o cinema como arte, e como as seleções imagéticas e sonoras se portam em tela ao serem confrontadas pelo peso literário. Carvalho escolhe manter o texto original fielmente apresentado em tela, como se fosse incapaz de alterar ou invadir o que Lispector fez. Mais do que uma homenagem, é um respeito pelo original quase como uma santidade inviolável. O cineasta volta o seu olhar para a representação, para a sensorialidade própria do cinema, como uma forma de transformar aquela obra santificada em algo novo, que sai das páginas e encontra uma manipulação imagética e sonora a fim de tocar o espectador de novas formas. A sugestão do sombrio, da intimidade, da metamorfose humana, da inquietude psicológica e da culpa, deixam de ser uma sugestão apenas, se apresentam no corpo de Maria Fernanda Cândida e em sua voz, em uma de suas grandes atuações da carreira, na trilha sonora que grita, nos planos detalhes de mãos e da barata. Assim, Carvalho venera Lispector, mas cria a sua própria “A Paixão Segundo G. H.”, com a percepção astuta do cinema não como realidade, e, sim, como uma nova possibilidade de sensações. Como uma forma de transgressão sem transgredir. Como a beleza de cada quadro desconfortável dentro daquele apartamento. E, acima de tudo, como o processo mental ganhando a tela pelo rompimento constante do espaço e do tempo.