|Crítica| 'As Linhas da Minha Mão' (2024) - Dir. João Dumans
Crítica por Victor Russo.
'As Linhas da Minha Mão' / Embaúba Filmes
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Viviane de Cássia Ferreira vai tomando o longa para si e faz do espectador um ouvinte de mesa de bar para revelar sua psique e sexualidade
Co-diretor de Arábia, João Dumans é parte integrante de uma das tendências mais prolíficas do cinema brasileiro contemporâneo, uma fusão entre o documentário e a ficção a ponto de não haver mais diferença entre ambos, tanto em acontecimentos quanto em estética. A proximidade dos personagens toma conta da tela, não uma história de causa e consequência a ser seguida, somos apenas convidados a testemunhar aquelas conversas, cotidianas, como se estivéssemos juntos em uma mesa de bar, mas nos fosse tirado o direito de responder. Entretanto, ao contrário da maioria dos filmes nessa linha, As Linhas da Minha Mão vai desconstruindo a conversa a fim de se tornar quase um monólogo. Não daqueles típicos das peças de teatro, muito menos com o caráter mais rebuscado e pomposo que geralmente se impõe a esse tipo de filme no cinema. O monólogo aqui é muito mais natural, é consequência da figura representada e sua capacidade de dominar a cena. Tudo começa como uma conversa, mas raramente alguém fala a não ser Viviane.
Assim, Dumans transforma todos os demais, inclusive a si mesmo, em figurantes. Nada mais importa, a câmera se fecha, com uma profundidade baixíssima. Outros estão ali, mas só vemos Viviane, ou pelo menos a partir do momento que ela proíbe sem proibir os demais de falar. Não é só uma dominância de imposição, mas de narrativa. As narrativas da personagem, já que não são apenas as histórias que ela conta, mas, sobretudo, como ela conta. Ela se abre diante de nós, mas nunca está vulnerável. Sempre no controle, Viviane nos diz quem é, o que sente, o que passou em sua vida. Do mais profundo de sua psique, a depressão e os pensamentos conturbados que moldam essa imperatividade por se revelar, à sua sexualidade, o libido que domina o seu corpo e suas histórias. Não há repressão, já que é Viviane quem controla as ações, ela escolhe falar.
Sempre com uma cerveja em uma mão e um cigarro na outra, a sensação de uma mesa de bar permanece, ela nos hipnotiza com os seus pensamentos, mesmo quando a linha de raciocínio e até muitas palavras não são claras. Não importa, não nos é permitido sair daquele lugar. Mais do que isso, não queremos deixar de ouvir a partir do momento que o filme vai se revelando e Viviane assume as rédeas. Como os demais personagens que tentam falar e são interrompidos, mas aceitam essa posição de quem escuta, ou mesmo a manipulação da mise en scène, que só tem olhos para a personagem, ficamos, e ficamos, e nem percebemos o tempo passar. As histórias nos chocam, transgridem o espectador acostumado com um pudor na contação de história. Mas Viviane está ali, como em uma roda de amigos, fala com naturalidade, nem pretende chocar, tudo soa banal para ela, e Dumans reforça essa percepção sem aparecer. Mantém aquela dinâmica documental, mesmo que não saibamos se aquilo é realidade ou ficção. Não importa e deixamos de nos importar também. Apenas basta que Viviane continue narrando, em seu ritmo, sem pressa, mas sem espaço para interrupções. Ela fala e só nos resta escutar. Não rejeitamos, nem nos desesperamos. Mal percebemos nossa passividade, apenas aceitamos nosso lugar e que bom que assim o fazemos.