|Crítica| 'Todos Nós Desconhecidos' (2024) - Dir. Andrew Haigh
Crítica por Victor Russo.
'Todos Nós Desconhecidos' / 20th Century Studios
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Andrew Haigh faz da sua fotografia de “planos bonitos” e austeros uma busca desesperada por se encaixar no padrão “filme de autor” do cinema independente contemporâneo
O que pensaria Maya Deren se visse o que se tornou o cinema independente de hoje? Uma das grandes cineastas de todos os tempos, Deren era uma das maiores defensoras da liberdade no cinema, vendo no amadorismo independente a única forma de uma arte finalmente livre das amarras da padronização do cinema de estúdio. Ainda que a definição de “cinema independente” seja mais clara apenas em grandes indústrias, sobretudo Estados Unidos e Reino Unido, torna-se cada vez mais perceptível como esse cinema que tenta fugir a todo custo do mainstream tem mergulhado em uma padronização estilística que limita a autoria sem que esses diretores percebam. A Indústria da Cultura que rejeita o diferente e manipula o público a consumir filmes que não fujam de uma mesma dinâmica, adentrou com força esse cinema de orçamento menor e reconhecimento maior em festivais. A cinefilia que grita contra Hollywood e os grandes blockbusters e exalta tudo que foge desse núcleo, nem percebeu que virou fã de produtoras e empina o nariz ao defender filmes supostamente “mais artísticos”, mas, no processo, tornou-se refém de mais uma padronização dessa indústria que nada tem de transgressiva. Se antes os autores combatiam ou tentavam negociar com a indústria dominante a fim de experimentar com a linguagem cinematográfica e fazer seus próprios filmes, hoje, o que existe é apenas um novo degrau dessa indústria para agradar e vender para um público menor, mas ainda relevante. Se a A24 foi a maior responsável por esse discurso meio elitista, enquanto reforçava uma estética padronizada, sua influência fez com que autores, mesmo quando não trabalhavam para a produtora/distribuidora, seguissem à risca essa cartilha da “verdadeira arte” que só se empobrece a cada novo filme.
Todos Nós Desconhecidos acaba sendo vítima e culpado nesse processo. Claro que o incômodo cresce a cada obra que parece replicar a fórmula sem perceber, enquanto se vê como transgressiva, profunda e superior. O olhar não se volta então apenas para esse longa, mas para todo um processo de formação silenciosa de um gosto, que nem os diretores percebem estarem inseridos. Mas, claro, não dá para ignorar o momento histórico em que cada filme está posto e nem defender a nova obra de Andrew Haigh justificando que o ótimo A Bruxa, por exemplo, fazia uso de uma linguagem semelhante. Todos Nós Desconhecidos veio depois e carrega consigo o peso da repetição, o que não isenta o filme de fazer da cartilha a sua diretriz narrativa, e o torna ainda mais culpado por como o discurso cinematográfico se instala aqui.
O tema, mais uma vez, é o verdadeiro interesse, enquanto o estilo se torna uma decoração bonita e quase à parte. Haigh tem o seu elenco como o grande chamariz para essa cinefilia que tem os seus preferidos, e o simples fato de ter Andrew Scott e Paul Mescal como um casal gay já é o suficiente para esse filme gerar interesse, fazendo muitos, inclusive, nem ligarem muito para o fato do segundo ser quase um figurante que retorna só quando a obra quer simular algum tesão inexistente ou reforçar pela milésima vez sobre o que é, fato esse que gera uma reação ainda mais contraditória nessa cinefilia, que aponta o dedo em tom acusatório para os “blockbusters cheios de exposição que emburrecem o espectador”, mas bate palma para filmes que dão voltas e voltas reforçando o mesmo assunto, impedindo o público de refletir sobre da mesma forma, só que envolto em um adorno mais bonitinho.
Entretanto, o fato do filme de Haigh ser muito mais superficial do que acredita ser a respeito do tema central nem seria uma grande questão se não fosse essa pretensão estilística típica de diretor iniciante (o que está longe de ser o caso de Haigh) que está virando tradição no cinema independente. A fotografia de planos bonitos, estilizados por filtros e cores gritantes, e que busca a todo custo criar “simbolismos” e “significados escondidos”, com o tradicional distanciamento dramático, que mesmo quando filma esses personagens não propõe uma conexão com (por parte do espectador) e entre eles, mas um afastamento por meio de uma austeridade na forma como eles agem e deixam os silêncios reflexivos dominarem a narrativa, fazem de Todos Nós Desconhecidos mais um melodrama para quem não gosta de melodrama (assim como a bobagem do “pós-terror” que rejeita o terror e atrai pessoas que odeiam filmes de terror), usando-se dos códigos do gênero, como o close-up, mas os soterrando em uma cartilha que vê como superior artisticamente a rejeição completa ao cinema mais frontal de gênero, neste caso, com uma recusa ao exagero dramático típico do melodrama, dispersando-o em um afastamento emocional que faz o espectador olhar tudo aquilo a quilômetros de distância, mesmo quando a câmera está colada no rosto de Scott, Mescal, Claire Foy e Jamie Bell. Assim, quando o filme nos manipula em busca do choro, nem uma lágrima escorre por aqueles personagens que agiram como robôs suprimidos por planos perceptivelmente calculados durante mais de uma hora. Funciona menos ainda quando Haigh tenta criar um jogo de plot twists que já estavam óbvios desde o início, enfraquecendo ainda mais o drama, não só pela estética e pelo afastamento emocional, mas também por depender demais dessas situações que já tinham sido esclarecidas.