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|Crítica| '20 Dias em Mariupol' (2024) - Dir. Mstyslav Chernov

|Crítica| '20 Dias em Mariupol' (2024) - Dir. Mstyslav Chernov

Crítica por Raissa Ferreira.

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'20 Dias em Mariupol' / Synapse Distribution

 

Título Original: 20 Days in Mariupol (Ucrânia)
Ano: 2024
Diretor: Mstyslav Chernov
Elenco : -
Duração: 94 min.
Nota: 1,0/5,0

 

Operando sua câmera como uma intrusa, Mstyslav Chernov cria um amontoado jornalístico cuja única linguagem é o choque sensacionalista

A imagem tem poder. A todos que percebem isso e sabem usa-lá, o vídeo e o cinema podem ser armas de denúncia ou até manipulação. Desde a chegada nos anos 70 das câmeras de vídeo portáteis, nasceu uma opção mais fácil e barata de fazer filmes, o que foi percebido e usado por ativistas, por exemplo, para registrar manifestações, condições de vida de trabalhadores, problemáticas políticas e por aí vai, só para começar a pensar seus usos, é claro. É comum em documentários sobre catástrofes ou guerra, que registram o “aqui e agora”, o uso das câmeras digitais ou de imagens de arquivo que podem vir até mesmo de celulares, a invenção mais recente que facilitou ainda mais o processo de captar imagens, para transmitir em situações adversas e da melhor forma que podem os acontecimentos. O que ocorre em 20 Dias em Mariupol, porém, se afasta um pouco do cinema e é muito mais próximo de uma matéria jornalística para a televisão. Não fosse a narração da voz suave de Mstyslav Chernov que acaba servindo ao propósito de ligar os acontecimentos em uma narrativa, junto às telas que indicam os dias passados, o espectador poderia pensar estar assistindo a um compilado de youtube das imagens exibidas na televisão. O propósito do trabalho do jornalista, que passou esses 20 dias em busca dos registros mais chocantes da guerra para denunciar o que estava acontecendo logo após a invasão Russa na Ucrânia, talvez nem fosse a princípio o de realizar um filme, ao longo dos dias é possível perceber por sua insistência em repetir seus registros que o documentário funciona quase como um portfólio. Mstyslav Chernov se viu como um mensageiro da verdade e quanto mais difícil se tornava sua comunicação com o mundo, aumentava sua vontade de invadir a dor das pessoas para expor uma realidade cruel. O resultado disso é desgastante, invasivo e sensacionalista, transformando essa verdade que ele tanto queria mostrar quase em um prêmio atrelado a suas imagens, enquanto a humanidade se perde no processo.

O Oscar tem um fetiche pela violência da guerra e a cada temporada novos conflitos ganham seu gosto. Até pouco tempo eram os documentários sobre a Síria os favoritos e agora, obviamente, a Ucrânia tomou esse espaço. Até na categoria de curtas todos os anos encontramos filmes que exploram a dor e o sofrimento das pessoas que lutam para sobreviver nos destroços da guerra, enquanto alguém filma corpos empilhados. Não é que seja ruim filmar a guerra, é claro, o poder da imagem deve ser usado também para registrar a história, denunciar, expor ao mundo o que acontece em lugares que ninguém está olhando, etc, mas é tudo uma questão de como filmar e como apresentar essas imagens. Em 20 Dias em Mariupol, não demora muito até que algumas pessoas se incomodem com as filmagens de Mstyslav Chernov, por exemplo, mesmo quando reclamam e não querem ser filmadas, suas imagens são inseridas no filme com a narração da voz macia do diretor dizendo entender a raiva deles. Em outros momentos é perceptível a surpresa ou o desconforto nos rosto daqueles que são invadidos por sua lente. Uma criança chora no porão e se move com algum espanto quando percebe que está sendo filmada, e o jornalista aproveita o momento para se aproximar com seu zoom truncado, pouco a pouco, quando consegue captar suas lágrimas. Mstyslav parece um intruso, e embora alguns gritem para que algo seja filmado ou até queiram depor por vontade própria, o que domina é um mau gosto que beira a falta de ética.

De gatos mortos até cadáveres de bebês enrolados em panos, a câmera em 20 Dias em Mariupol registra tudo, sedenta pelo sangue. A repetição das imagens prova que o diretor não sabia muito bem o que estava fazendo, filmava para a televisão e em algum momento resolveu montar tudo em um documentário, mas fez questão de ressaltar como as mesmas filmagens que já vimos puras no filme, também foram exibidas no mundo todo em programas de TV. Ao longo desses 20 dias, cresce uma noção nele de que sua missão é transmitir o que realmente estava acontecendo, enquanto a mídia tentava descredibilizar as tragédias, mas seu trabalho é puramente o de enfiar lentes em feridas, filmar corpos de crianças perdendo a vida, poças de sangue e pais chorando, não há realmente uma narrativa, nem sobre a guerra, nem sobre a equipe que filma ou sobre as pessoas que são registradas, é tudo um amontoado de imagens gráficas que ou encontra o desconforto e a incapacidade de permitir o uso de imagem, ou um clamor para que tudo seja filmado como uma resposta de ódio das vítimas e trabalhadores. Nesses momentos, caberia ao cineasta pensar eticamente o que deveria ser gravado ou inserido na montagem, mas parece que a regra é colocar tudo aquilo que chocar ao máximo, sem distinções. Sua única linguagem é o sensacionalismo e sua narração beira o sadismo, já que enquanto se aproxima do fim do filme, esse diretor vai se tornando mais distante dos fatos e se colocando quase em um lugar superior de quem fez uma grande parte para ajudar.

Não há outra razão para 20 Dias em Mariupol ter conquistado o lugar de importância que conquistou senão sua temática. Basta para muitos, inclusive para o Oscar, que o filme contenha uma questão urgente e que esteja alinhada com a política estadunidense. Mostrar a dor dos Ucranianos e como a Rússia está destruindo tudo e matando pessoas é suficiente, não importa que o filme seja pobre, de péssimo gosto, montado de formas bastante duvidosas e sem ter realmente muito a dizer a não ser chocar o espectador com imagens gráficas de crianças mortas. Vence o “filme necessário” mas quem perde é o cinema e a habilidade de contar histórias. Enquanto ótimos cineastas sabem documentar de forma a estabelecer uma mensagem potente, outros só sabem implorar por atenção enfiando suas câmeras na dor. 

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