|Crítica| 'Levante' (2024) - Dir. Lillah Halla
Crítica por Victor Russo.
'Levante' / Vitrine Filmes
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Tomado por uma união e energia jovem, Lillah Halla retrata a dificuldade do processo de aborto mesmo com o suporte de pessoas próximas
Recentemente, tornou-se cada vez mais comum no cinema brasileiro (e mundial) abordagens pouco preocupadas formalmente e que buscam, como objetivo maior, a denúncia ou ironia de uma série de temas, muitas vezes sem uma ligação forte entre eles e sem um desenvolvimento para além de um apontar de dedos para esses problemas, quase como se essas obras tivessem a obrigação de responder a um checklist de problemas políticos e sociais do Brasil, mas não o fizessem por meio de uma narrativa cinematográfica sólida, e, sim, com rupturas constantes desconectadas do todo.
Lillah não foge de um cinema que tem as pautas como fio condutor. Pelo contrário, a montagem desde o início faz questão de expor o quadro falando que a técnica Sol (Grace Passô) foi revolucionária ao introduzir e lutar por um time com representatividade, planos detalhes mostram as agulhas entrando na pele dessas mulheres trans que fazem parte do time ou essas, em um impulso de diversão jovem, fazendo xixi em pé de cima da ponte nos carros que passam lá embaixo, diálogos escancaram a facilidade do aborto para classes mais abastadas e a dificuldade para quem é pobre no Brasil, assim como conectam a clínica de fachada com a igreja do bairro e a manipulação dela contra o aborto de forma chantagista e criminosa, além de ter na relação amorosa principal duas mulheres e ser um filme que luta pelo direito da mulher em poder tomar suas próprias decisões, entre elas, o aborto. Não há uma pretensão da diretora em suavizar ou metaforizar o discurso. Mesmo essa relação do time com as abelhas, em que Sofia (Ayomi Domenica Dias) seria a abelha-rainha da qual tentam cortar as asas, em nada diminui a frontalidade escancarada das diversas pautas que Lillah deseja trabalhar. Só que a diretora tem habilidade suficiente para conduzir a sua narrativa integrando todos esses elementos do Brasil contemporâneo em torno da protagonista e o seu grupo de apoio (amigas e o seu pai, este após uma rejeição inicial).
Nesse sentido, a presença do pai viúvo como um ponto de apoio é até uma quebra de expectativa, mas que nunca se torna o foco do longa. Isso porque, apesar dos planos próximos com baixa profundidade de campo, reforçando constantemente o quanto Sofia se sente sozinha e aquela questão é dela e só dela, “Levante” vai encontrar sua força nessa juventude que se une e se rebela, presente desde as músicas, funks e raps que confrontam o puritanismo conservador, passando pelas festas, diversão e brincadeiras, até essa união do time, como se fosse uma só pessoa (o aborto de Sofia se torna o único obstáculo a ser superado pelas integrantes do time, que aceitam abrir mão até do dinheiro que as ajudariam), contra a mentalidade retrógrada de um país que rejeita direitos básicos às mulheres e uma classe dominante que tenta impor os seus preconceitos na base do grito e da violência.
Assim, “Levante”, por mais que entenda que a pessoa realmente e completamente afetada é Sofia, não segue o caminho comum da individualização desse processo doloroso. Hallah vê como única possibilidade de se rebelar contra o sistema a união contra uma classe dominante. Se Sofia já enfrentaria o mundo sozinha para ter seu direito atendido, mesmo que essa sociedade a enfrente com muito mais número e poder de volta, ao ter o apoio das suas amigas, de Sol, do seu pai e até das colegas do outro time que nem a conheciam, a força para esse levante se torna um pouco menos desesperadora, mas ainda dolorida e quase impossível. No fim, mesmo com todo o apoio, o processo é cruel, sobretudo em um país como o Brasil.