|Crítica| 'Ferrari' (2024) - Dir. Michael Mann
Crítica por Victor Russo.
'Ferrari' / Diamond Films
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A corrida é santificada, assim como a imagem e o som que a expõe, enquanto a vida secreta de Enzo Ferrari é uma farsa que beira a comédia, mas carregada de tragédia e um bom dramalhão à la italiana
Em uma referência direta à sequência do batizado de “O Poderoso Chefão 3”, vemos logo no início de “Ferrari” uma montagem paralela que coloca Enzo Ferrari (Adam Driver) em uma missa, enquanto sua cabeça está no piloto da Maserati tentando bater o recorde de volta mais rápida. Tal sequência não poderia ser mais significativa de tudo aquilo que Michael Mann vai propor a seguir em sua cinebiografia dessa figura no mínimo questionável. Enzo é apaixonado pelas corridas e a competição em alta velocidade, vive para isso e é o que realmente leva a sério, enquanto sua vida pessoal, tratada como algo secreto, mas não tanto assim, não passa de uma farsa meio ridícula, carregada de tragédia e intrigas, como um bom dramalhão italiano.
Driver incorpora então essa figura de forma quase caricatural, uma paródia não tão escrachada do dono da maior escuderia da história da fórmula 1 e do sonho de consumo de todos apaixonados por carros de luxo, que se apresenta já visualmente em sua caracterização, cabelo e maquiagem carregados e cheios de estranhamento para quem conhece o ator, mas que também é transposto para todos aqueles que estão a sua volta, desde a esposa que sofre e age em resposta, com uma Penélope Cruz descabelada, gritando e perseguindo a verdade, enquanto ameaça o marido com uma arma, ou o piloto super confiante, tendo Gabriel Leone se passando por espanhol e andando para lá e para cá com uma jaqueta de couro. A própria língua (o filme é inteiro falado em inglês com um sotaque bem canastrão) revela essa despreocupação de Mann com um drama mais sério, ainda que ele mire completamente nesse fazer cinematográfico bem característico e histórico do cinema italiano.
Assim, se a vida pessoal de Enzo se apresenta de forma meio farsesca, Mann vai fazer o oposto com tudo que envolve o ato de pilotar e correr pelas pistas. A corrida é santificada, como na missa do início, o som do ronco dos motores toma a tela, a montagem exibe cada ação dos pilotos, desde o carro por fora e as ultrapassagens, até o simples trocar de marchas, e toda a emoção mais direta é provocada no espectador por meio desse ato divino, sublime e elevado. Enzo, vendo de fora, parece se desprender da realidade, ser engolfado pela competição, pela possível vitória e, acima de tudo, por ver seus carros ganhando aquele tapete infinito. O personagem muda junto com a abordagem de Mann, não deixa de ser um canastrão, cheio de atitudes questionáveis, mas, naquele momento, ele se perde, como se o mundo ao redor não importasse mais. É essa transposição do personagem que Mann traz para o público, nos emergindo no que há de mais frontal na relação entre espectador e tela. Se nunca nos esquecemos de estarmos vendo um filme quando o foco é a vida de Enzo, o completo oposto ocorre quando os motores são ligados e os veículos mais rápidos e perigosos do mundo ganham as pistas.
Dessa forma, não poderia ser mais acertada a escolha de Mann e de Troy Kennedy Martin por fazer dessa cinebiografia apenas um recorte da vida de Enzo, em um momento decisivo para a escuderia, um pouco antes da marca ser adquirida pela Fiat. Não há um caráter propagandístico aqui, pelo contrário, o longa vai mais ridicularizar a Ferrari do que exaltá-la. Entretanto, por mais que a comédia domine essas atitudes dos personagens, o longa vai se desenvolver diante de nós como as corridas mais decisivas que vemos, com os personagens correndo contra o tempo para atingirem seus feitos, seja descobrir a traição do marido e dominar suas decisões a partir daí, ou mesmo salvar a empresa de uma possível falência. Conhecemos Enzo em seu pior, nas mais deploráveis atitudes, mas a forma como ele se importa, assim como Mann por meio da imagem e do som, com aquelas máquinas vermelhas de cortar o vento, faz o personagem ganhar a nossa atenção e compartilhar com nós a emoção de uma boa vitória na corrida constante contra o tempo e os demais adversários. É só por conta disso que a tragédia vai ganhar peso, não só o filho perdido que nunca vemos, mas, principalmente, quando ela ocorre na pista, rapidamente e com tons de exageros e brutalidade. O mesmo carro capaz de provocar adrenalina e nos tirar da cadeira é também uma máquina de tirar vidas. A imagem mais uma vez vai fazer questão de nos mostrar tudo, fazendo desses veículos a vida e a morte no mesmo lugar e ao mesmo tempo.