|Crítica| 'Os Colonos' (2024) - Dir. Felipe Gálvez
Crítica por Victor Russo.
'Os Colonos' / MUBI & O2 Play
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Western revisionista de Felipe Gálvez redefine o espaço e a forma de olhá-lo, não retirando o homem branco de primeiro plano, mas transformando o seu poder sob uma ótica ridícula e sanguinária
Não deixa de ser curioso que a primeira exibição de “Os Colonos” tenha sido no mesmo Festival de Cannes 2023, que tinha como filme mais aguardado “Os Assassinos da Lua das Flores”. Apesar das muitas diferenças de abordagens, com o filme do Martin Scorsese lidando até muito com o gangsterismo, ambos vão se passar em um período histórico próximo (entre uma e duas décadas de diferença, a depender das elipses temporais) e retratar um tipo de extermínio dos povos originários a fim de um suposto progresso tecnológico e social. Mais do que isso, as duas obras vão colocar em primeiro plano justamente os executores desse massacre, não com o charme do antiherói da Nova Hollywood, mas com a vilania escancarada e patética dessa masculinidade egóica que se vê no direito de dominar o mundo.
Mas as semelhanças não vão muito além disso, já que a forma como vão revisionar o western como gênero e estética são bem diferentes. Gálvez não tem o orçamento de Scorsese e parte de uma abordagem bem mais intimista desse processo histórico. É uma revisão muito mais temática e de olhar do que necessariamente visual. O uso constante da grande angular como forma de distorção da imagem daqueles seres repugnantes até serve como uma rejeição ao classicismo mais limpo do faroeste das décadas de 1930 a 1950. Só que, no geral, o cineasta chileno ainda se usa do espaço de forma semelhante ao retratado historicamente no gênero, das cavalgadas vistas de longe, às fogueiras nas pausas noturnas, até o uso mais direto da arma de fogo como símbolo de dominação. O que faz de “Os Colonos” uma revisão do gênero é justamente o conhecimento do contexto histórico e a ressignificação desses elementos clássicos a partir de uma abordagem mais irônica.
Os homens brancos não são mais os detentores do progresso e os “índios” os selvagens, como convencionou-se olhar no cinema hollywoodiano anterior à década de 1960 (período em que o western passa a ser revisado até pelo seu grande nome: John Ford). Gálvez nem sequer mostra os nativos exterminados, faz questão de não transformar sua imagem em um palco do sangue nativo como entretenimento. Isso não quer dizer que a brutalidade do homem branco é retirada da equação, muito pelo contrário, ela se exibe sem que os nativos precisem aparecer com maior evidência. É o massacre filmado em um espaço esfumaçado em que não reconhecemos os rostos dos mortos, mas sentimos o peso de cada corpo sendo derrubado pelas balas. É o cortar a orelha, mais uma vez sem vermos muito da pessoa morta, que reforça a barbaridade desses homens incapazes de perceber que o selvagem na verdade são eles mesmos. Ou mesmo o genocídio escondido na elipse que retorna como relato brutal.
Gálvez, surpreendentemente em seu longa de estreia, domina então sua forma não rejeitando a estética do gênero, mas moldando a nossa percepção na maneira de retratar. Os brancos em primeiro plano não só não mais vistos como heróis, mas eles precisam aparecer o tempo todo justamente para mostrar como essa sociedade americana (falando no sentido correto, da América como continente) se construiu pelas mãos de homens patéticos e sanguinários, que se enxergavam como seres divinos em uma missão transformadora. Por isso, por mais que as cenas e relatos mais brutais possam nos impactar, a grande revelação do cineasta está justamente em quando vemos esses homens brancos, de descendência europeia, interagindo por mais tempo e em grupos maiores. Quando são postos no mesmo espaço, lutam entre si para provar sua masculinidade patética e frágil, como a sequência em que o trio encontra os ditos argentinos, se matam e disputam o poder, como o encontro com o coronel britânico.
Só que nada é mais assustador do que o prólogo, uma representação voraz e silenciosa de como esse suposto progresso, construído sobre os cadáveres dos povos originários, estabelece uma dinâmica de poder sob a ótica de uma falsa reparação histórica. É quando o longa deixa de falar apenas sobre o desenvolvimento dessas sociedades americanas e percebe como ela se reflete nos dias de hoje (ainda que no filme seja na primeira década do século XX). O mesmo homem branco que exterminou agora retorna como reparador, pelo menos aos olhos da opinião pública, enquanto, no fundo as falsas promessas não só seguem tratando os nativos como produto, mas, principalmente fecham esse ciclo desesperador construído por Gálvez, o de que não importa para onde olharmos, sempre haverá um homem branco no controle. Os nativos que antes eram exterminados continuam sem qualquer controle dos seus destinos, podendo ir apenas até onde os brancos permitirem.