|Crítica Mostra 2023| 'Na Água' (2023) - Dir. Hong Sang-soo
Crítica por Victor Russo.
'Na Água' / Hong Sang-soo
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Hong Sang-Soo funde os elementos de sua mise-en-scene por uma câmera que se apresenta como o dispositivo dramático definidor
Não é novidade nos filmes de Sang-Soo a câmera evidenciar sua presença. Pouco há de clássico no seu cinema, no sentido do espectador nunca ser colocado na posição de observador afastado de um mundo que esconde sua forma em uma falsa sensação de realidade. O cineasta sul-coreano sempre fez não só da câmera presente, mas o seu universo ficcional ultrapassa o limite divisivo e afastado entre obra e público na própria dinâmica mitológica que se desenvolve por sua filmografia. Por mais que não haja uma ligação direta entre os seus universos fílmicos, grande parte da magia do cinema do diretor está nessa correlação direta entre como seus outros longas e, sobretudo, sua vida pessoal, serve como referência para esses filmes, como a declaração de amor ao final de “O Filme da Escritora”, que só funciona em seu máximo potencial para quem sabe sobre a relação terminada entre o cineasta e Kim Min-Hee. Entretanto, a câmera como dispositivo nunca tinha sido tão visível em suas obras como é em “Na Água”. Se o seu zoom tradicional não chega a ser um choque muito grande ao espectador, visto que documentários, o cinema indie e até mesmo a Nova Hollywood faziam muito uso da técnica, tirar o foco da lente acaba por ser uma radicalização difícil de ser igualada.
Entretanto, a falta de clareza da imagem, que parece ser o único diferencial, pelo menos em um primeiro momento, em relação aos outros filmes do cineasta, já que aqui continuaremos vendo personagens artistas com relação ao cinema (fazendo um filme nesse caso) conversando livremente de forma filosófica, enquanto jantam e vão à praia (dois elementos bastante presentes no cinema de Sang-Soo), acaba por ser menos uma transgressão formal e mais um modo de unir a essência da sua mise-en-scene em uma coisa só, assim como o personagem e o mar no doloroso plano final (momento que amarra a história e solidão do protagonista a essa escolha estética mais chamativa).
Assim, se o cinema do sul-coreano tem sua potência em elementos mais simples e quase banais, como a presença dessas personagens nos espaços, sem a busca de uma grande mensagem ou reviravoltas marcantes, mas entendendo que o drama pode vir do cotidiano e dos encontros que deixam sua marca naquele tempo e lugar específico, “Na Água” vem para quase rejeitar esses dois elementos fundamentais do cinema (atuação e cenário), diminuindo suas presenças por um lado, pela falta de clareza da imagem (ainda que não totalmente, já que vemos não só as formas em movimentos, como também escutamos as vozes, recurso crucial em quase toda atuação), só que, ao mesmo tempo, ao fazê-lo, Sang-Soo unifica a sua essência em uma coisa só. Ou seja, pessoas e espaço, atuação e cenário, se fundem em uma indefinição perante os nossos olhos. Como se na busca por ser o mais anti-Sang-Soo possível, o cineasta tivesse atingido a plenitude do seu próprio cinema. Mais uma vez retorno ao plano final, já que é só por meio desse momento, até bem sutil, que o cineasta revela a força dramática desse dispositivo. A câmera como um detentor do controle dramático humilde o suficiente para dentro do sua manipulação formal permitir à história e ao protagonista arrebatarem toda essa unificação narrativa.
Para os que dizem pejorativamente que Sang-Soo faz sempre o mesmo filme, “Na Água” revela como é possível manter um certo rigor do próprio cinema e ao mesmo tempo tornar cada obra única.