|Crítica| 'Culpa e Desejo' (2023) - Dir. Catherine Breillat
Crítica por Raissa Ferreira.
'Culpa e Desejo' / Synapse Distribution
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Explorando a complexidade dos desejos, Breillat filma o prazer e a paixão de perto, dando contorno às nuances de uma problemática relação em que ambos se tornam reféns
Catherine Breillat é tida por muitos - injustamente - como uma cineasta que busca puramente o choque e as polêmicas, com filmes como “Para Minha Irmã” e “Anatomia do Inferno” a diretora francesa é bastante incompreendida por essas pessoas que reduzem seu trabalho dessa forma. Seja como for, fora a temática emprestada de “Rainha de Copas” (May el-Toukhy, 2019) é difícil compreender quem viu em seu novo trabalho, depois de 10 anos sem lançar filmes, algo muito chocante. É engraçado que até em comparação, o que não é nunca necessário em casos de remakes, o filme dinamarquês tem muito mais esse intuito do que o de Breillat, que vai muito mais no caminho de uma paixão, beirando o romance, do que a relação puramente carnal do original. Verdade seja dita, os corpos podem ser bastante explorados pela diretora em seus trabalhos, explicitamente, mas nunca de forma vazia, sempre buscando algo a mais no significado de suas imagens, da relação entre os personagens retratados e na provocação proposta ao espectador. Em “Culpa e Desejo”, Breillat só muda o caminho da história mais próximo ao desfecho, reforçando sua assinatura, mas é sua intenção que faz deste um filme bastante diferente do primeiro. Por meio de Anne (Léa Drucker) o longa explora a complexidade dessa mulher e de seus desejos, bem como os de seu enteado, nunca esquecendo que há uma relação de poder estabelecida obrigatoriamente pela diferença de idade e pelo núcleo familiar em que estão inseridos, mas sempre partindo dessa visão do que os move internamente em seus estados menos racionais, movidos por seus corpos e sentimentos.
Nem tudo é carnal, e, dessa forma, o sexo não é completamente exposto em tela, Breillat entende como retratar um tesão pulsante sem precisar mostrar cada parte do corpo, pelo contrário, ela aposta em colocar sua câmera o mais próxima possível desses corpos unidos, peles, bocas e seus rostos de prazer. Corpos nus são anatomia básica, é a forma como se filma que traz a sensualidade ou a excitação à tona. Assim, em primeiro momento, a diretora foca no prazer de Theo (Samuel Kircher), nos olhares lascivos para a madrasta, sempre com a câmera destacando seus olhos brilhantes pairando em Anne, sem que vejamos o rosto da mulher, depois em suas expressões faciais no primeiro encontro sexual entre os dois, em que mais uma vez, não vemos a reação de Anne, apenas de Theo, seu prazer preenchendo a tela, seguido pela culpa de Anne ao final da relação. É só após esse primeiro ocorrido que Breillat nos mostra o desejo na madrasta também, em seus olhares, nos corpos próximos e, finalmente, na relação sexual que foca completamente em seu rosto e em seu êxtase. Dessa forma, o filme não coloca o jovem como uma peça totalmente manipulada pela mulher mais velha, entrega a ele primeiramente a vontade de transgredir enquanto ela se deixa levar muito facilmente por sua ânsia. Não é que Breillat vá absolver Anne, ainda que o sexo com o marido seja retratado como algo tedioso, a narrativa deixa claro que a mulher compreende a dimensão problemática da relação e não é apenas uma esposa entediada, mas é justamente essa profundidade nada simples que a diretora busca explorar, de como o desejo faz essa advogada tão experiente, consciente e com uma vida estável, colocar tudo a perder.
É interessante a encenação que muitas vezes a diretora busca, colocando o espectador como cúmplice em cenas que posicionam dois personagens conversando, lado a lado, voltados para a frente, para a câmera, como se quem assiste estivesse sentado ali, frente a eles, observando, escutando, até participando desses momentos. O único momento em que o filme oculta algo é a virada em que Theo começa a se perder, por sua imaturidade comum à idade, ao ver que não pode mais ter seu objeto de paixão. Digo muitas vezes sobre paixão porque realmente existe essa atmosfera sentimental entre os dois, de sorrisos e olhares que não são apenas uma vontade carnal, mas algo a mais, como uma paixonite adolescente mesmo. A diferença de idade é também explorada nesses pontos, em que Anne olha para o passado logo no começo do filme, para refletir como os jovens enxergam as pessoas mais velhas e como, aos poucos, ela mesma deixa de ver a criança em Theo para o observar com atração, mas é constantemente lembrada pelas consequências e atitudes de que ele é apenas um jovem imaturo. A complicação de como os anos de vivência afetam as relações é sempre trabalhada nos conflitos entre ambos, e é por isso que seria impossível absolver Anne, visto que a todo momento o filme mostra como Theo é frágil por simplesmente ser tão mais novo que ela.
A relação problemática torna os dois reféns, mesmo que Anne tente sair disso de forma racional, a tentação sempre a puxa novamente, da mesma forma que Theo processa isso de acordo com sua maturidade, sendo incapaz de se libertar da paixão pela madrasta. Até nos momentos em que o longa pontua o lado advogada de Anne, que manipula para se livrar da culpa (como consequência moral e jurídica e não como sentimento) existe sempre essa busca mais profunda, nada é tão simples assim porque tudo envolve o que há de mais irracional do ser humano, as vontades de instinto e de emoção, todas combinadas em uma situação condenável que parece impossível de se escapar. A evolução dessa relação inapropriada se torna sofrimento, como Breillat costuma refletir os jogos de poder entre gêneros, é possível enxergar aqui essa mesma dinâmica. Enquanto suas clientes jovens são agredidas e violentadas por homens mais velhos, a dor de Theo é interna, uma cicatriz traumática acima de tudo, mas que não deixa Anne ilesa, misturando choro, lágrimas e desespero com o sorriso de satisfação de quem mais uma vez, sucumbiu às suas vontades. Há muito o que se condenar na prática, mas a forma como Breillat explora essa história não busca uma resposta fácil, de vilã manipuladora ou vítima vulnerável, é muito mais complexo do que uma premissa lida de forma vazia como “polêmica” pode revelar.