|Crítica Mostra 2023| 'A Besta' (2023) - Dir. Bertrand Bonello
Crítica por Victor Russo.
'A Besta' / Bertrand Bonello
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Independente do tempo, Bertrand Bonello busca o sentido da vida pelo amor e pela representação (cinematográfica) mutável da realidade
Léa Seydoux surge solitária em meio a um fundo verde, antes mesmo de sabermos o nome da personagem que interpretará, enquanto ao fundo escutamos um homem, provavelmente o diretor do filme, dando as diretrizes a serem seguidas. Poderia ser, e até é naquele momento, uma piada aos filmes de alto orçamento, sobretudo hollywoodianos, em que os atores interpretam solitariamente, enquanto cenários, figurantes, animais etc são inseridos apenas em computação gráfica posteriormente. Entretanto, o que vemos a seguir, durante as quase duas horas e meia de projeção, ressignifica essa cena de abertura, não só retornando a ela em flashes (até pouco efetivos), mas principalmente estabelecendo uma correlação entre essas realidades e a noção de representação do cinema capaz de criar uma nova verdade, ainda que falsa.
Podemos expandir isso para a nossa própria realidade e como vivemos interpretando, tentando se encaixar e, com isso, nos tornando cada vez mais superficiais. Alguns diriam que perdemos a nossa essência nessa ânsia por pertencimento, mas existiria mesmo uma essência perdida ou corrompida? Ou seríamos esses seres que vivem para ser de mentira? A verdade é que esse pensamento filosófico e sem resposta interessa menos a Bonello do que a necessidade do ser humano pela mimese. O cinema nasce dessa busca infinita e inalcançável, superando a fotografia, que anteriormente tinha feito o mesmo à pintura. A sétima arte, antes mesmo de ser pensada como arte, surge libertando essas outras da pretensão do real. E ainda que André Bazin, grande nome da teoria realista no cinema, apareça décadas depois ao debate, desde os primórdios o cinema é visto (tanto por outros teóricos quanto por realizadores) como esse espaço para a performance da realidade. Entretanto, até mesmo Bazin entendia que não passava de uma representação, que o real nunca seria alcançado em tela, por mais que técnicas defendidas por ele, como a grande profundidade de campo e o uso de não atores, pudesse gerar uma sensação maior de um mundo verdadeiro, ao diminuir a percepção da manipulação da lente cinematográfica ou da atuação menos espontânea da equação.
Ao abrir com um fundo verde e reprisá-lo posteriormente, Bonello nos recorda que por mais que o amor do casal ultrapasse os anos e as realidades (não há uma clareza se tudo realmente segue uma mesma linha do tempo na história), não passa de uma encenação, como a boneca que tenta parecer um bebê ou uma menina, mas não deixa de ser uma boneca, ou a inteligência artificial que aparenta ser uma mulher, mas continua sendo um androide. Só que como a robô parece mais um ser humano do que a boneca, o cineasta entende que há uma mudança constante na forma de representação, sempre em direção a esse suposto realismo. Por mais que todos sejam falsos, assim como o cinema, a aparência da realidade é maior, da mesma forma com o seu potencial ou não de emocionar e se emocionar. Com isso, “A Besta” vai acompanhar esteticamente essa constante alteração, ainda que, o tom menos pomposo e mais realista do presente ou mais distante e tecnológico do futuro talvez nunca tenham a paixão do passado, capaz de arder em vontade e dor de uma forma quase shakespeariana. Assim, Bonello está acima de tudo falando dessa ânsia pela mimese que é tão inerente ao cinema, e o faz exatamente dessa forma, pelo uso do cinema.