Crítica O Pequeno Corpo (2023) - Dir. Laura Samani
Crítica por Raissa Ferreira.
'O Pequeno Corpo' / Pandora Filmes
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Laura Samani faz de seu filme uma jornada lírica que encontra no realismo as duras barreiras da fé e na fantasia a possibilidade de atravessá-las
O canto por vozes femininas toma a tela ainda escura, já criando uma atmosfera mística, em seguida é o ventre que vemos primeiro, antes do rosto da mãe. Esse retrato do corpo de Agata (Celeste Cescutti) como utilidade, organismo formador de outros seres, é declarado já na primeira cena e será largamente explorado ao longo do filme, nesse sistema retrógrado baseado na fé em que a humanidade é deixada de lado pelos outros e a mulher é vista como um recurso, seja pelo ventre que gera, pelos cabelos ou pelo leite que produz. As crenças, que também são fundamentais para guiar a narrativa, são bem estabelecidas como um manual desse mundo que Laura Samani nos apresenta, que pode ser lido na sinopse como a Itália de 1900 mas que é, cinematograficamente falando, algo difícil de ser colocado no tempo ou espaço, por sua fantasia que parece tirada da literatura e, portanto, poderia ser qualquer mundo mágico, em qualquer período que podemos imaginar, não sendo necessária uma representação mais afirmativa nesse sentido, e que não é nunca indicada na obra, em tela. Assim, os dialetos falados (Veneto e Friuli) podem remeter a algo muito antigo, mas também se aproximam bastante do italiano, o pequeno vilarejo em que Agata vive é também um lugar quase solto no mundo, cercado pelo mar com uma fotografia que sempre une o azul claro da água e do céu como se fossem uma coisa só. Parece que os moradores ali estão muito próximos do paraíso que tanto desejam alcançar por sua fé, com essa natureza azul servindo como um portal sempre ao redor deles. É essa mesma água que Agata precisa atravessar para iniciar sua jornada de martírio materno, colocando todas as suas necessidades e medo de lado em busca da salvação da alma da filha.
Esse caminho é traduzido quase como curtos capítulos de um conto em que Agata passa por pequenas desventuras passageiras. A cada passo seu, algum núcleo novo aparece, alguma nova dificuldade deve ser ultrapassada. Seus primeiros momentos em terra, longe de seu mundo azul claro, revelam a presença de Lynx, ou Lince (Ondina Quadri) a quem pode ser atribuída uma ambiguidade de gênero, mas o que realmente importa é como sua aparição é quase como a de um ser mágico da floresta. A relação entre esses personagens busca sempre a linha que divide o realismo da fantasia, a crueldade humana, a frieza e as limitações, contra as possibilidades, o enfrentamento e a compaixão. Aquele sistema de crenças muito bem marcado desde o começo, que gera tanto sofrimento em Agata, é lembrado sempre como uma barreira para as mulheres, principalmente nossa protagonista, mas é um tanto diluído por esse mundo mais ganancioso em que ela caminha em busca da salvação da filha. Na jornada ela encontra mais pessoas que querem usar seu corpo e seus recursos, que não enxergam sua dor e não olham uns para os outros com humanidade. É praticamente uma ambientação medieval, mas muito mais clara e limpa, em que a sobrevivência é a maior lei.
Esse mundo criado por Laura Samani tem muito de pesquisa e aproveita as pessoas reais e não atores das regiões exploradas na narrativa, mas seu filme jamais abraça um lado mais realista e histórico, é quase um poema de fantasia que se vale da realidade como estrutura a ser debatida e desafiada. Vemos poucos homens, o marido de Agata, por exemplo, aparece em primeiro momento até desfocado, eles pouco importam aqui, são as mulheres que ditam e criam as estruturas, inclusive quando é algo negativo, um roubo, um abuso, uma ganância desmedida. As questões que envolvem a identificação de Lynx são inseridas sutilmente, sem a intenção de criar algum debate focado em uma definição sobre isso, mas em retratar seu deslocamento e isolamento, de quem se sente não pertencente ao mundo, que quer deixar aquilo que está morto - seu passado - sem nome e libertar sua própria alma também. Existem, portanto, muitas inserções que talvez não coubessem no tempo e espaço histórico que Laura pesquisou, mas que podem ser livremente trabalhados em sua fantasia.
Ao longo dessas pequenas passagens, apenas nos momentos em que Agata bate de frente com as crenças é que ela consegue atravessar as barreiras dadas como impossíveis para uma mulher, mas sempre usando um tanto de mágica a seu favor. Seja no carvão passado no rosto para se esconder da montanha que faz mulheres desaparecerem, ou o próprio ímpeto de buscar uma igreja que ressuscita bebês natimortos, não é o crer nas regras mais duras de sua religião que a leva a qualquer lugar, mas sim sua força interior de imaginar que existe algo além disso, sua maternidade dolorosa e penosa que a faz buscar tudo afora do possível, da realidade, para salvar sua filha de uma condenação eterna. Contra o realismo do padre que não tem compaixão ao dizer para uma mãe que a alma de sua bebê estará sempre presa ao purgatório, vem o barqueiro que atravessa sua alma de um ponto ao outro, a água - agora em um azul escuro - que serve de condutora e a mágica que liberta a alma de Mar, para que mãe e filha estejam livres e juntas pela primeira vez e para sempre.
Tudo é crença, seja nas escrituras sagradas que os padres usam como manuais retrógrados de fé para viver, ou nas mitologias contadas, forças da natureza e acontecimentos fantásticos que desafiam a lógica, o crer em algo é o motivador, mas fica claro que tudo que é mais realista é bastante limitador e só quem consegue acreditar no que existe além é capaz de libertar sua alma.