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|Crítica| 'O Mal Não Existe' (2024) - Dir. Ryusuke Hamaguchi

|Crítica| 'O Mal Não Existe' (2024) - Dir. Ryusuke Hamaguchi

Crítica por Victor Russo.

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'O Mal Não Existe' / Imovision

 

 
Título Original: Evil Does Not Exist (Japão)
Ano: 2024
Diretor: Ryusuke Hamaguchi
Elenco : Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa, Ryuji Kosaka e Ayaka Shibutani.
Duração: 106 min.
Nota: 4,5/5,0

 

Por meio da decupagem de planos pacientes, Ryusuke Hamaguchi faz da natureza e comunidade que vive em harmonia com ela um local místico prestes a ser transformado

A câmera se move suavemente, em um travelling que mira para o alto. Apenas os galhos secos infinitos, como rios que se ligam e encontram diferentes finais, separam a lente e o céu acinzentado. Esse mesmo plano que abre “O Mal Não Existe” retornará no plano final, porém agora mais escuro e adquirindo um novo significado, menos harmonioso, muito mais pessimista. Essa ironia do título representa bem essa sombra, mas também a transformação constante que o cineasta propõe. Ao ser apresentado com a palavra “não” em outra cor, Hamaguchi reforça essa ambiguidade que veremos pelos mais de 100 minutos a seguir.

É curioso perceber como esse discurso ambientalista adquire também uma representação mutacional. O filme é sobre essa mudança. Assim, os característicos planos longos e contemplativos do cineasta abrem o longa ao ganharem um olhar observador da relação de harmonia entre o homem e a natureza. Vemos o “faz tudo” (Hitoshi Omika) cortando tronco atrás de tronco, até juntar uma pilha de lenha. Depois, enchendo galões de água. Tudo lentamente, não com a finalidade de nos fazer esperar, como é comum no slow cinema, mas seguindo um fluxo natural das ações, como esse rio que escorre à sua própria velocidade. O personagem, então, é posto nessa posição de mediação entre a comunidade e os elementos do ambiente que servirão essas pessoas em suas vidas cotidianas. Não há exploração predatória, apenas uma subsistência harmoniosa. Essa pequena vila é tomada por uma mística sobrenatural, como um espaço anterior que sobrevive à modernidade transformadora. Os tiros ao fundo já anunciam que isso está prestes a mudar. Não que o lugar esteja intocado, o próprio protagonista reforçará posteriormente que todos eles são forasteiros, vindos de colonos que habitaram esse local antes virgem. Entretanto, eles reconhecem esse lugar de dependência para com o ambiente que os cercam e fazem uso dele de forma discriminada.

Se o longa constrói essa mística local a partir dos planos pacientes, isso muda quando os representantes do capital adentram o lugar. A decupagem adquire um certo classicismo no plano e contra plano, essencial para estabelecer não só o confronto entre os locais e os forasteiros endinheirados, mas também como ponto fundamental nessa mudança constante do mundo que Hamaguchi propõe (a mudança é também estética). O tom também se altera e o humor inesperado e mais direto a fim de ridicularizar os homens do capital em toda a sua arrogância ignorante. O mal existe, há uma consciência da ruína local por quem toma as decisões. As conversas de zoom e toda a tecnologia que se apresenta nesse momento aparecem a fim de reforçar esse mundo capitalista disposto a quebrar qualquer barreira que surja contra o acúmulo do capital. O cineasta não esconde que vê esses seres como inferiores, mas entende também o quanto são capazes de transformar o mundo (para pior) pelo poder burguês que detêm.

Chegamos então a uma terceira parte que praticamente abandona esse humor e adota um tom mais pessimista, enquanto a decupagem retorna à mística do local, mas não da mesma forma. Não há mais contemplação, e, sim, desespero. Quando o tempo congela, pouco se tem da observação inicial. Agora, a pausa é um prenúncio para a catástrofe. Os tiros ao fundo continuam não aparecendo, assim como o capital se esconde nas grandes cidades, mas o resultado se evidencia de forma trágica na natureza e em todos que ousam harmonizar com ela. O mal pode se ocultar diante dos nossos olhos, mas ele existe e a dor que encerra o filme é a representação mais clara e profunda que Hamaguchi conseguiria tirar disso. O rio sujo pelos de cima sempre será consumido pelos que estão lá embaixo.

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