|Crítica Mostra 2023| 'Não Espere Muito do Fim do Mundo' (2023) - Dir. Radu Jude
Crítica por Raissa Ferreira.
'Não Espere Muito do Fim do Mundo' / Radu Jude - Mostra 2023
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Cercado de referências da literatura, cinema, filosofia e política, Radu Jude faz crítica ácida e bem divertida da sociedade atual e suas muitas problemáticas
A tela com imagens em preto e branco avisa que veremos a parte A do filme, que usará comparativos com outro filme Romeno dos anos 80, não sabemos o que esperar a partir daí, mas somos jogados na louca rotina de Angela (Ilinca Manolache) por Bucareste, e grande parte dessa jornada acontecerá dentro de seu carro, seu meio de trabalho principal. Podem não existir cores nesses momentos, mas certamente o cinza é mais uma estética do que uma ligação emocional com a imagem. Angela usa um vestido brilhante, ainda que não possamos ver por muito tempo as cores dele, sua vida não é nem um pouco parada e tudo que há de deprimente aqui é um reflexo da realidade, porém sempre exibido como uma sátira divertida, que não apenas critica as problemáticas da sociedade contemporânea como olha para esse abismo em que estamos enfiados rindo dele. Ao mesmo tempo, o longa alterna entre imagens coloridas do filme “Angela Moves On” (Lucian Bratu, 1982) sobre uma outra Angela, taxista, trabalhadora em Bucareste, como que realizando um constante paralelo entre a Romênia do passado com a do presente, da rotina de trabalho nas ruas de uma mulher às mudanças estruturais e sociais do país. Nessa parte do filme, que é praticamente toda sua duração, existem outros momentos em cores, quando a Angela do presente usa seu celular e um filtro para gravar vídeos satirizando situações e lugares, como sua persona de homem médio, calvo, misógino e com péssimas coisas a dizer. Assim, o longa de Radu Jude aproveita imageticamente tudo que pode para montar sua narrativa, TikTok, telas de computadores, celulares, reuniões do zoom, cinema na tela verde e produção de filmes publicitários, bem como as muitas referências culturais, Godard, Goethe, Dostoiévski, políticas e filosóficas. Poderia passar o dia citando nomes e ainda assim, jamais seria capaz de lembrar de todos. É essa união de elementos que pincela cada cena, e mesmo que um ou outro passe batido, a identificação com as precarizações contemporâneas é universal.
Obviamente que há muito aqui do estado atual da Romênia, é perceptível o esforço de Radu Jude para mostrar ao mundo como estão as coisas por lá, tudo que foi sendo destruído ou sucateado, o caos de como as pessoas se relacionam no cotidiano (do trânsito aos preconceitos mais profundos) e como o capitalismo de agora, que vem destruindo mais coisas (visíveis ou não) ainda culpa o comunismo por suas falhas. Essa vontade de falar do país também existe nessa costura da narrativa com o filme dos anos 80 de Lucian Bratu, uma obra pouco conhecida que instiga o espectador por meio do contato com suas imagens, situações e com sua atriz principal, que também trabalha no longa de Jude, agora mais velha, criando um ponto de identificação entre ela e a protagonista.
A maior movimentação da narrativa vai sempre de encontro às questões trabalhistas. Angela trabalha informalmente, de projeto em projeto, e durante o longa acompanhamos um dia dela no ganha-pão da vez, encontrando pessoas que sofreram acidentes de trabalho para gravar um vídeo publicitário para a empresa que os negligenciou. Não poderia existir ironia maior do que essa para a situação trabalhista no mundo todo. Enquanto a mulher roda a cidade toda numa jornada que parece desafiar a ideia de que um dia só tem 24 horas, pessoas que foram prejudicadas permanentemente, de forma física e financeira, se veem obrigadas a colaborar com o vídeo para conseguir algum dinheiro. Por muito tempo, o filme acompanha totalmente o lado dos trabalhadores, ainda que Angela faça parte desse “trabalho sujo” ela é tão explorada, ou até mais, do que eles. Não há tempo de descanso, a dinâmica do filme evidencia a exaustão dessa jornada absurda sem nunca perder seu tom humorístico, da mesma forma que a mulher vive nesse caos sem perder sua acidez, usando como escape seu personagem bizarro do tiktok, Bóbita, uma caricatura de um romeno real, criminoso e absurdamente misógino.
Mesmo quando as críticas políticas são mais densas, o humor consegue levar de forma inteligente seus comentários, seja pelo texto muito bem elaborado e com as tantas referências já citadas, pela levada da protagonista que transforma a sátira em algo próprio dela ou pela lógica do absurdo que é observado, mas que é um absurdo real, extremamente conectado com a nossa sociedade. A miscelânea que vemos aqui, de meios, informações e alusões poderia ser uma bagunça, mas se encontra muito bem como parte desse mundo moderno caótico que recebe o filme, dentro e fora desse mundo encenado todas as pessoas são peças prontas para serem usadas pelo sistema, tudo é produto, tudo pode se tornar comercial e ter sua alma sugada por alguns trocados para se colocar em uma tela verde sem ter controle de como serão usados depois. A emoção é fabricada em alta resolução, as histórias são usurpadas e todos são ferramentas de exploração em maior ou menor grau. Então, às vezes, só resta assistir à lenta conformação de que não há muito mais o que fazer além de rir disso tudo.
Ainda que a parte B se torne um tantinho cansativa, mantendo-se dentro da mesma narrativa como um breve adendo final, o resultado geral de “Não Espere Muito do Fim do Mundo” é uma inteligente observação dos fracassos da sociedade atual e dos projetos neoliberais que nos soterram, muito bem orquestrado por seu diretor.