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|Crítica| 'Atiraram no Pianista' (2023) - Dir. Fernando Trueba & Javier Mariscal

|Crítica| 'Atiraram no Pianista' (2023) - Dir. Fernando Trueba & Javier Mariscal

Crítica por Victor Russo.

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'Atiraram no Pianista' / Sony Pictures

 

Título Original: Dispararon al Pianista (Espanha)
Ano: 2023
Diretores: Fernando Trueba e Javier Mariscal
Elenco : Jeff Goldblum
Duração: 103 min.
Nota: 3,0/5,0

 

A beleza da animação não consegue esconder o didatismo do documentário convencional, mas não deixa de ser fascinante a paixão com que os diretores olham para a bossa nova e investigam o caso

Em uma época em que a fantasia visual da animação é tão desvalorizada frente ao realismo do live-action (ou da animação 3D hiperrealista), é bonito de ver como técnicas mais inventivas ou menos ortodoxas, muitas vezes trabalhosas e de difícil execução, como a rotoscopia, ainda encontram o seu espaço para as mais diversas formas de contação de história. No documentário, tal perspectiva é ainda mais rara, ganhando notoriedade ora ou outra com filmes indicados em premiações mais populares (como foi o caso de “Flee” e “Valsa com Bashir” no Oscar), ainda que essas obras sejam mais frequentes do que essas poucas mais conhecidas. É o caso de “Atiraram no Pianista”, o que não é uma novidade para a dupla “Fernando Trueba e Javier Mariscal”, que já haviam mergulhado nesse mundo em “Chico e Rita”, obra que eles autorreferenciam aqui e também demonstra esse amor de ambos pela música e pelo piano. 

Entretanto, é interessante perceber como o longa que abre o Festival do Rio 2023 (o que faz bastante sentido, já que o filme se passa quase inteiro no Rio de Janeiro e exalta esse sentimento carioca dos anos 50 e 60) usa da técnica não só como uma experimentação gráfica, mas também de forma bastante prática. Mesmo acompanhando esse protagonista escrevendo um livro em 2009, o fascínio dos diretores está no passado, nesse período de modernidade, alegria e prosperidade artística, logo antes de uma repressão que em grande parte destruiu essa renovação. Até o título “Atiraram no Pianista”, por mais que aqui se trate de uma história real, faz referência direta a “Atire no Pianista”, de François Truffaut, enquanto Trueba e Mariscal criam um paralelo entre a Bossa Nova na música e a Nouvelle Vague no cinema, símbolos de inovação artística que dominaram o mundo naquele período. Assim, a animação permite uma reconstrução não só da investigação do assassinato (flertando até um pouco com uma lógica de Errol Morris no excelente “A Tênue Linha da Morte”), mas de todo aquele Rio de Janeiro boêmio e encantador, criando assim, imagens que jamais foram filmadas, transformando um imaginário em uma possibilidade visual real. 

Fica evidente então a paixão da dupla espanhola por todo esse momento, lugar e, acima de tudo, sentimento, algo que tem tudo a ver com essa bossa nova que ganhou o mundo justamente por despertar algo jamais sentido em quem a ouvia pela primeira vez. Ao mesmo tempo, isso nunca tira exatamente o foco desse interesse genuíno pela descoberta. Tenório Júnior é alçado a uma posição de mito, uma alma sublime que foi esquecida pela cultura popular após ser alvo de ditaduras que tomaram conta da América Latina. Não que o documentário o exima de suas questões pessoais mais reprováveis, sobretudo a traição, ao fazer turnê com a amante mais jovem, enquanto a esposa grávida estava no Brasil cuidando dos outros três filhos deles e recebeu a notícia do desaparecimento e possível execução do marido ao mesmo tempo em que descobria estar sendo traída. Porém, essa situação é muito mais um asterisco do que um parágrafo no filme, a balança sempre pende para o fato dele ser a vítima de uma possível execução, e, principalmente, para a exaltação por seus colegas e amigos da sua habilidade musical, caráter íntegro e companhia agradável.

Só que todo esse fascínio dos diretores transportado e personalizado pelo protagonista Jeff Harris (Jeff Goldblum) acaba também por tirar um pouco o foco da obra. Mais do que isso, a animação como esse meio artesanal em um filme que glorifica a expressão artística não sustenta essa inovação que o longa propõe, já que, no fim, “Atiraram no Pianista” faz dela uma decoração visual para um documentário amarrado no que há de mais tradicional nesse formato narrativo. Claro que as entrevistas são fundamentais para entender o fato e o personagem, mas ao individualizar a narrativa nesse protagonista fictício o que Trueba e Mariscal estão fazendo é justamente usá-lo como um meio de falar sobre muita coisa sem tanto direcionamento. Isso fica claro sobretudo em como superficialmente Jeff reflete sobre a culpa estadunidense naquele assassinato e em todos os golpes na América Latina, o que nunca vai muito pra frente, ou em como tenta contextualizar a bossa nova e conectá-la ao caso de Tenório abordando medalhões como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Milton Nascimento que nada têm a ver com o desaparecimento e assassinato do pianista. É um daqueles casos que talvez funcione melhor para espectadores de outros países, pois para quem tem algum conhecimento do contexto e das figuras apresentadas, “Atiraram no Pianista” vai esvaindo o seu interesse central em um didatismo meio maçante.

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