|Especial| 'Oldboy' - 20 anos de um clássico moderno
Artigo por Victor Russo.
'Oldboy' / Park Chan-wook
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“Oldboy”: hiperestilização do desespero no começo do milênio e o despertar do cinema sul-coreano
20 anos após a sua estreia oficial, “Oldboy” retorna aos cinemas no Brasil e no mundo com uma bela cópia remasterizada em 4K a partir do filme original em 35mm, realizada sob a supervisão do próprio Park Chan-Wook, e distribuída pela Neon (no Brasil, chega pela Pandora Filmes), a mesma distribuidora de “Parasita”. Não deixa de ser um momento propício para isso, não só por conta do aniversário de duas décadas de uma obra que se tornou fenômeno cultural ao redor do mundo, em uma época em que o cinema asiático raramente atingia tal tipo de aclamação para além de uma bolha cinéfila mais restrita, mas principalmente por chegar apenas três anos depois da Coreia do Sul ser o primeiro país de língua não-inglesa a vencer o Oscar de Melhor Filme, além de ter um domínio cultural que se expande pelo mundo no cinema, na TV e na música (K-Pop, principalmente), atingindo aquele status questionável de gênero no boca a boca e nas divisões de plataformas de streamings. Entretanto, para os “Parasita”, “Invasão Zumbi” e “Round 6” existirem, foi necessário que precursores abrissem essa porta e lá está “Oldboy” como um pilar nesse sentido, no começo do século XXI.
A Explosão Cultural Sul-Coreana e o Seu Contexto Geopolítico
Por mais que 23 anos possa parecer muita coisa, não é nada quando se trata de um cinema sair do desconhecimento popular para uma posição de destaque. Isso porque não se trata apenas de lançar filmes bons e logo ser aceito pelo mundo. Hollywood demorou décadas para atingir o potencial de dominadora da distribuição cinematográfica no mundo, o que só foi ocorrer plenamente após a Segunda Guerra Mundial, quando as suas principais potências concorrentes, como França, Alemanha e Japão, estavam devastadas por uma Guerra que não aconteceu no continente americano. Agora, pensar em tal crescimento em pleno século XXI, quando as mudanças são cada vez mais rápidas, mas a indústria já está para lá de estabelecida e controlada por uma grande potência, é ainda mais relevante. Trata-se de estabelecer um gosto novo e fazer o público rapidamente abraçar aquela nova forma de linguagem. Tal fenômeno só ocorreria com um investimento massivo que levasse essas obras ao público de todo o mundo, fazendo essas pessoas escolherem por esses “novos” filmes em detrimento daqueles de outros países. Porém, só investimento financeiro também não seria o suficiente se o caminho não fosse facilitado no processo.
A explosão cultural sul-coreana, ou apenas coreana (já que a divisão entre Coreia do Sul e do Norte é uma denominação falha do ocidente), no K-Pop, no cinema e, mais recentemente, na televisão/streaming só foi possível pela “permissão” de quem detém o poder da produção e distribuição da indústria: os Estados Unidos. Então, para entender como a Coreia do Sul saiu de um país pouco relevante no cinema mundial para uma das grandes potências atuais, é necessário inserir um contexto histórico e geopolítico. E, claro, aqui meu foco será o cinema, área que eu estudo e domino, mas muito do que direi também servirá para as outras artes, sobretudo a música.
É necessário, antes de mais nada, entender que nenhum país estabelece uma forte indústria cinematográfica sem o apoio estatal. Os Estados Unidos, maior indústria cinematográfica do mundo, não só tem atualmente incentivo do governo federal e dos estados (sendo a Geórgia o caso mais significativo), como Hollywood foi provavelmente o maior pilar de soft power americano. Durante mais de 30 anos (entre os anos 30 e 60), o chamado Código Hays, ou código de produção, sob forte censura e com apoio do estado, foi o símbolo do sonho americano, vendendo os seus ideais de meritocracia para todo mundo, ao mesmo tempo em que suprimia personagens negros, gays, latinos e tudo aquilo que era visto como “perigoso” para a moral e os bons costumes estadunidenses. O que pode parecer uma bobagem, na prática, criou uma realidade paralela que foi vendida e aderida não só nos Estados Unidos, mas mundo afora.
É esse preceito básico que os liberais brasileiros não entendem e nem querem entender, achando que cultura deve dar dinheiro imediatamente e que “o povo não deve pagar pelos filmes”, mas que o governo sul-coreano reconheceu há pouco mais de duas décadas em seu extremamente bem-sucedido projeto cultural. Então, a arte não só se tornou uma fonte de empregar milhares e milhares de profissionais no país ou uma forma bastante efetiva de soft power ao difundir essa cultura para o mundo, como também ajudou e muito no gigantesco crescimento econômico que a Coreia do Sul teve, tornando-se uma das grandes potências do mundo. Sim, investimento em cultura dá dinheiro e poder geopolítico para as nações, e esse país é o maior exemplo disso.
Ao mesmo tempo, voltemos a esse entendimento geopolítico que comentei inicialmente, mas não explorei ainda. Não falarei exatamente sobre a Guerra da Coreia, até porque não tenho conhecimento para tanto. Por isso, olharei para o presente e para alguns anos atrás. Não é segredo para ninguém que a chamada Coreia do Norte é uma rival dos Estados Unidos. Não teria como ser diferente, já que se trata da nação mais fechada do mundo e um dos únicos três países realmente comunistas (além do poderio bélico) no mundo contemporâneo, um fantasma que os Estados Unidos tentam combater há décadas. Não irei mais a fundo nesse debate, já que foge da minha alçada, mas disse tudo isso apenas para ressaltar que a Coreia do Sul não é só o país que fez “Parasita” e tem o K-Pop, ela é principalmente um parceiro militarmente estratégico para os Estados Unidos. Pode parecer que tudo isso é só politicagem, que está muito longe do cinema e de “Oldboy”, mas tudo isso é muito mais próximo do que parece. Não só por conta daqueles clichês verdadeiros de que a arte imita a vida ou todo filme é político. Vai além disso, a arte não é só conteúdo (temas), mas também estética, e essa estética carrega discurso. Um plano, atuação ou escolha de montagem não são simples recursos para contar uma história, são carregados de ideologia também.
Então, é importante, acima de tudo, ter em mente que se a indústria cultural sul-coreana atingiu tal patamar em tão pouco tempo, é por conta de um projeto de difusão cultural como forma de soft power e retorno econômico. É também por causa do investimento massivo que o governo fez. E se isso ocorreu é porque os Estados Unidos permitiram e tinham interesse estratégico nesse crescimento, assim como “Parasita” ganhou Oscar também por ser um grande filme e ter recebido uma campanha de 200 milhões de dólares do governo sul-coreano, mas não só por isso. O interesse geopolítico americano no país não é carta fora do baralho, talvez seja, na verdade, a carta mais marcada e importante dentro desse baralho. Lembra que eu falei sobre a estética carregar ideologia? Então, esse soft power que rende milhões aos cofres da Coreia do Sul só existe porque a arte do país é uma extensão modificada daquilo que os Estados Unidos sempre fizeram. A influência americana é tão grande que jovens sul-coreanas tentam com maquiagem ou cirurgias tornarem os seus olhos “mais ocidentais”, ao mesmo tempo que as narrativas de Bong Joon-Ho, Park Chan-Wook, Hwang Dong-hyuk e afins, as que realmente vendem no ocidente, são também as que mais se aproximam do fazer ocidental e estadunidense. Não é o Hong Sang-Soo que chega a todo mundo e se torna popular, mas as obras que lidam com gêneros clássicos de Hollywood simplesmente adicionando uma pitada da cultura sul-coreana, sobretudo no exagero das atuações e situações.
Diretor, equipe e cast de 'Oldboy' durante as gravações.
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Como Tudo Isso Começou?
Dizer que o cinema sul-coreano começou no início deste milênio é uma grande bobagem. Mas faça um exercício: olhe ano a ano, a partir dos anos 80 e 90 (ou antes disso se quiser), verificando os filmes lançados e seus respectivos diretores. Provavelmente, até o mais cinéfilo conhecerá pouco do que foi lançado antes dos anos 2000. Mais do que isso, perceberá que os grandes nomes do cinema da Coreia do Sul, aqueles com obras que ficaram populares ou conquistaram os festivais mundo afora, surgem quase todos juntos. Alguns com seus primeiros longas no final dos anos 90 (como Lee Chang-Dong ou Kim Jee-Woon), outros nos anos 2000 mesmo (como Kim Ki-Duk e os já citados Joon-Ho, Sang-Soo, e, claro, Chan-Wook).
Nesse sentido, 2003 é até um ano bastante icônico por ter algumas das principais obras da história desse cinema sendo lançadas em um espaço de poucos meses. “Oldboy” dava sequência à trilogia da vingança de Chan-Wook, começada um ano antes em “Mr. Vingança” e terminada dois anos depois em “Lady Vingança”, Joon-Ho lançou “Memórias de um Assassino”, talvez seu trabalho mais aclamado antes de “Parasita”, Ki-Duk trouxe “Primavera, Verão, Inverno, Outono… Primavera”, o seu mais reconhecido longa, e Jee-Woon concebeu “Medo”, filme que só seria superado em popularidade na sua filmografia pelo longa de vingança “Eu Vi o Diabo”.
Claro que pode ser coincidência tal aclamação em um mesmo ano, até porque tais diretores já apareciam em festivais dois, três ou cinco anos antes, enquanto “Oldboy” só começou a realmente se tornar um fenômeno após ser aclamado no Festival de Cannes, em júri presidido por Quentin Tarantino, que rasgou elogios ao filme, como era de se esperar, e deu ao longa o Grande Prêmio (uma espécie de medalha de prata) na competitiva daquele ano. Ressalto isso porque, apesar de ser de 2003, o filme só foi exibido no festival do ano seguinte. Além disso, Sang-Soo teria o seu primeiro trabalho mais reconhecido só em 2005, com “Conto de Cinema”, enquanto Chang-Dong, que fazia parte dessa geração e recebia atenção em festivais desde o finalzinho dos anos 90, só foi ter um trabalho que estremeceu o mundo em 2018, com “Em Chamas”. Então, por mais que 2003 seja um ponto de destaque, é perceptível como tal geração de cineastas foi se desenvolvendo e ganhando notoriedade durante todo um período.
Porém, o curioso é que tal aclamação não teve um caráter específico de movimento cinematográfico, como a Nova Onda Romena ou as diversas Nouvelle Vagues dos anos 60 e 70. Tais movimentos no cinema, apesar de relevantes, sempre tiveram vida curta. Enquanto isso, essa geração sul-coreana tem todos os seus principais cineastas ainda em atividade e em papel de destaque. Isso acaba por ser resultado justamente dessa máquina que se estabeleceu na indústria sul-coreana e que foi aceita (por motivos que ressaltei no tópico anterior) pelo cinema ocidental, que é quem realmente domina o jogo cultural no mundo, não só na indústria hollywoodiana, mas também nos principais festivais do mundo (Cannes, Berlim, Veneza, Toronto, Locarno etc), onde essas obras geralmente são exibidas pela primeira vez e adquirem o buzz para gerar interesse no público, como “Parasita”, que vence o Festival de Cannes e, a partir daí, estrutura sua campanha para o Oscar, quando realmente chega ao conhecimento de todo o público.
Entretanto, até o momento pode ficar uma impressão de que eu esteja diminuindo esse cinema sul-coreano como apenas uma extensão dos Estados Unidos ou resultado do interesse ocidental. Não é o caso. Entender os contextos geopolíticos e econômicos é fundamental para perceber como tudo vai além apenas da “qualidade cinematográfica”, muitas vezes tratada como algo sólido e definido, o que é bem problemático. Mostrar, por exemplo, porque o cinema sul-coreano deste século alcançou um status de popularidade que o iraniano de décadas anteriores não conseguiu, apesar da qualidade, importância e aclamação em festivais. Mas, isso não quer dizer que essa geração da Coreia do Sul não seja extremamente talentosa, porque ela definitivamente é. E o país tem sim um dos melhores cinemas do milênio. Ou seja, compreender o entorno do processo criativo em nada diminui o resultado artístico aqui atingido. E também entender que essa aproximação geopolítica com os Estados Unidos e grandes estúdios como a Netflix pode até passar a afetar o artístico alguns anos depois (o que nem sempre é algo ruim, como o várias vezes já citado aqui “Parasita”), mas não era necessariamente uma realidade no começo do século, quando esses cineastas surgem com um cinema de bastante personalidade e, muitas vezes, impulsivo.
Nesse sentido, é interessante perceber como, apesar de diferentes e autorais, todos os diretores citados (talvez Sang-Soo seja a exceção) lidam com o mundo a partir de uma ótica da violência, alguns deles, como Ki-Duk e muitas vezes o próprio Chan-Wook, com a intenção clara de usar de tal elemento a fim de chocar o público. Assim, percebemos mais uma vez como tal estética e proposta não está alienada do mundo, longe disso. Eles seguem uma tendência daquele momento do cinema mundial em muitos aspectos, do choque de cineastas como Gaspar Noé, Darren Aronofsky e Michael Haneke, até um olhar bem pessimista e de insegurança para com o futuro, comum nos filmes dessa virada de milênio (o que comentarei melhor nos próximo tópicos, usando “Oldboy” como a base para essa argumentação).
Muito Mais do Que Um Plot Twist ou Plano-Sequência
Sempre que “Oldboy” surge em uma conversa entre cinéfilos e críticos, parece que os destaques iniciais são sempre o plot twist final ou a sequência de luta no corredor, muitas vezes tratada como “plano-sequência do corredor”, por mais que, na prática, não seja um plano-sequência, apenas um plano longo (para que uma cena deixe de ser uma cena e se transforme em sequência, é preciso haver uma mudança de tempo ou espaço, e a cena acontece sem essa mudança). Mais do que isso, é comum que o debate sobre o filme nunca vá além desses dois elementos, muitas vezes resumindo a qualidade do filme a apenas essas duas obsessões cinéfilas, com direito a diversos vídeos e textos de listas colocando o filme nas posições de “maiores plot twists do cinema” ou “melhores planos-sequências da história”.
De certa forma, eu até entendo tal obsessão, sobretudo em uma cinefilia jovem. Até porque, o plot twist final (ou mais impactante, porque o prólogo traz mais um possível plot twist) e a cena do corredor não só são muito bons e impactantes individualmente, como também são bastante representativos para todo o longa. Entretanto, resumir o legado desse filme a apenas dois elementos dele é bastante reducionista, ainda mais em uma obra que não só funciona bem por si só, como, principalmente, marca um conceito específico do cinema mundial. Então, mais do que falar sobre esse legado que gera uma base de fãs, remake do Spike Lee (2013) e outro não-oficial indiano em 2006 (“Zinda”, do Sanjay Gupta), ou do fato muitas vezes esquecido de que o filme é baseado em um mangá (interessante, mas bem irrelevante para o todo da obra), proponho-me a olhar para “Oldboy” e compreendê-lo em seu período histórico, um cinema do começo do século XXI que vai além apenas do contexto sul-coreano e encontra ecos no cinema europeu, americano, brasileiro e em outros países asiáticos.
A Estilização do Desespero e a Pulsão Violenta Como Reflexo do Novo Milênio
Falar do cinema da virada ou pré-virada do século como um momento específico, em que os medos da sociedade se refletiram no cinema pelo mundo faz total sentido, mas nem sempre é totalmente correto ou completo. Isso porque, o cinema se desenvolve (não necessariamente evolui) ao longo do tempo, e é difícil ignorar o passado e sua influência no presente. Claro que se pegarmos obras como “Battle Royale” e, principalmente “Pulse”, vemos bem diretamente esse medo do contemporâneo inserido nas escolhas estéticas. O primeiro vai mais por um caminho de confronto geracional, o segundo tem seu maior pavor na internet como esse ser estranho que começa a crescer dentro do organismo do mundo. Unindo um pouco dos dois, mas seguindo um caminho distinto, aparece ainda “O Pacto” (mais conhecido por seu título em inglês: “Suicide Club”), outro filme japonês (os três citados são do país e lançados em 2000 ou 2001).
Entretanto, por mais que talvez seja o grande exemplo de representação desse medo do novo século e os elementos contemporâneos que esse evento trazia indiretamente consigo, o Japão não foi o único país a ter seus cineastas concebendo um olhar para essa grande mudança (seria a primeira e única transição do cinema entre um milênio e outro). Cada um ao seu modo, mas quase sempre com uma forte tendência ao desespero, à violência e à estilização, é também um momento em que o plano cinematográfico ganha um papel de destaque ainda maior nas discussões teóricas, como consequência do “surgimento” (entre muitas aspas) do chamado cinema de fluxo, que tem sua essência, de maneira bem grosseira, no fluxo dentro do plano . “Oldboy” e a geração sul-coreana aparecem com forte presença nesse contexto, mas não o fazem sozinhos. Para o bem ou para o mal, os já citados Noé, Haneke e Aronofsky, franquias como Jogos Mortais, filmes brasileiros da retomada como “Cidade de Deus”, “Abril Despedaçado” e “Bicho de Sete Cabeças”, além de obras de Cronenberg, Takashi Miike ou mesmo o popular “Amnésia”, de Christopher Nolan, vêm para ressaltar esse desespero quase sádico e muitas vezes hiperestilizado que domina esse momento do mundo e do cinema.
Ao mesmo tempo, “Oldboy”, apesar de mergulhado nesse contexto, vai olhar muito para o moderno e para o pós-moderno. O primeiro aparece na figura central a qual Chan-Wook sempre vai referenciar e moldar ao seu bel-prazer: Alfred Hitchcock (e o voyeurismo). “Janela Indiscreta”, “Psicose” e, principalmente, “Um Corpo Que Cai”, marcam esse elemento central ao cinema, arte de um público que, até então, tinha prazer em olhar para o universo projetado em uma tela, sem essa nunca olhar de volta. Tais filmes do cineasta inglês dão uma nova perspectiva para o cinema como arte, quando o observado cria consciência de que está sendo visto e devolve o olhar ao observador. É sobre essa lógica hitchcockiana que Chan-Wook construiu o seu último filme “Decisão de Partir”, quase um remake de “Um Corpo Que Cai”, ou o seu mais aclamado dos últimos anos: “A Criada”. Entretanto, nenhum em sua filmografia fez isso de forma tão indiscriminada quanto “Oldboy”, que faz desse jogo consciente de observação não só o ponto-chave para o desenvolvimento da história de vingança, mas também o inseriu no maior medo da tecnologia aqui representado, um novo milênio que nasce sob o terror de estarmos sendo vigiados o tempo inteiro.
Todavia, se o olhar para Hitchcock é o que molda essa história e seu tema, a forma como Chan-Wook lida com o plano cinematográfico tem muito mais a ver com um cinema que veio depois de Hitchcock, da hiperestilização dos maneiristas, que em grande medida olhavam para Hitchcock e o exageravam, como Brian De Palma, até um plano que ganha vida própria, mas se esvazia de consequências e peso, em um mundo sem esperança e perspectiva, dominado por uma falta de futuro, muito presente na obra de diretores asiáticos, como Hou Hsiao-Hsien, que teve seu extraordinário “Millenium Mambo” lançado dois anos antes do filme sul-coreano, e Wong Kar-Wai, que já tinha seus principais filmes (“Amores Expressos”, “Anjos Caídos” e “Amor À Flor da Pele”) realizados naquele momento, e dos quais Chan-Wook ecoa bastante ao congelar planos ou retratar essa cidade em movimento a ponto de torná-la invisível.
Chega a ser curioso então como o filme tenha ficado marcado por um plano-longo, quando, na verdade, o desespero do protagonista Oh Dae-Su (Choi Min-Sik) parte principalmente de uma decupagem frenética, uma montagem de planos curtos e estridentes, com cortes constantes (vistos já na sequência caótica e cheia de elipses da delegacia) que muitas vezes desespacializam o personagem no mundo (sobretudo na sequência que retrata rapidamente os anos de cárcere), consequência na diegese já evidente na premissa (Dae-Su fica preso em um quarto por 15 anos sem saber o porquê e perde o contato com o mundo no processo), mas que não deixa de ser a representação de Chan-Wook para esse novo milênio que começa a se abrir. Isso ganha ainda mais força quando percebemos que o personagem “abandonou” o mundo nos anos 1980 e só retorna a ele no caos do começo dos anos 2000, momento em que ele simplesmente se sente incapaz de lidar com essa nova realidade.
Assim, fica claro que Chan-Wook não só vê esse novo mundo como uma tragédia grega baseada em Édipo (de onde vem a violência, a vingança e o incesto inconsciente), mas ele olha para o personagem de Min-Sik como a representação desse mundo contemporâneo, o ser vigiado que enlouquece qualquer pessoa, sem entender a nossa razão de viver nessa sociedade (mais do que a vingança, o protagonista busca entender o porquê de tudo aquilo), demônios esses do personagem como encarnação do desespero dessa sociedade que são representados em duas frases centrais repetidas pelo longa: "Sorria, e o mundo vai sorrir com você. Chore, e você chorará sozinho" e "Mesmo sendo um animal, eu não tenho direito de viver?". Com isso, o cineasta só nos permite enlouquecer junto com Oh Dae-Su e o mundo que nos cerca e torcer por uma vingança que nem entendemos a razão de existir, assim como a fragilidade desse mundo contemporâneo que não dá escolha de sanidade ao ser humano.