|Crítica| 'Eami' (2023) - Dir. Paz Encina
Crítica por Victor Russo.
'Eami' / Filmicca
|
Assim como o fogo que cura é o mesmo que mata, Paz Encina cria uma contradição audiovisual ao encontrar uma intimidade distanciada por meio de um voice over pessoal que se choca com as imagens poéticas
Conhecer o contexto do lugar retratado pela cineasta paraguaia talvez faça bastante diferença aqui, para o bem e para o mal. Trata-se de um local de extrema exploração e desmatamento, uma guerra constante para os povos originários da região por manutenção da natureza e das suas próprias vidas. Entretanto, digo “para o bem ou para o mal”, pois saber tais informações pode facilitar o entendimento do espectador, ao mesmo tempo que seja sensorialmente desnecessário para o universo que a diretora cria. Isso porque, “Eami” (em tradução livre pode significar “floresta”, mas também “mundo”, o que faz total sentido no longa) é menos sobre um personagem, um acontecimento ou um tempo e muito mais sobre uma fluidez audiovisual pelo tempo e espaço de uma cultura.
Porém, para além dos filmes poéticos, o que mais chama atenção no longa de Encina são os constantes choques que permeiam a obra em sua totalidade. A começar por uma mistura entre ficção e documentário que nunca delimita em que momento um começa e o outro termina. E nem precisa. Ao mesmo tempo, toda a sua abordagem imagética conflita com o voice over presente em todo o longa. Se por um lado a imagem gera em teoria uma afastamento para com os personagens, não só pelo estiramento do tempo em cada plano da natureza, mas também em closes que não buscam uma conexão direta entre personagem e espectador, o sonoro e sua narração em off faz o contrário, aproxima–nos por meio de uma voz doce e machucada que olha para o lugar e o povo com pesar.
Entretanto, na prática, essas dicotomias não são tão distantes assim. É como se sempre houvesse um ponto de encontro nesses conflitos, pacíficos ou não. Em toda a relação dos povos originários com a floresta há essa beleza, que por mais distanciada que pareça, gera uma imersão, fundindo homens, animais e plantas, como a narração sugere. Tudo funciona por conta dessa narradora onisciente e quase atemporal, que nos instiga a se interessar por aquele mundo que pode ou não ser distante do nosso. O conflito então está nos exploradores, só que ainda assim dentro de uma dinâmica de encontro, seja por serem seres da mesma espécie daqueles que defendem a floresta, seja pelos elementos naturais semelhantes que possuem. Assim, “Eami” olha sutilmente para o uso do natural, a finalidade que cada ser humano encontra para a natureza. De um lado, o fogo é a morte presente o tempo todo (ainda que Encina esteja mais preocupada nos efeitos dela do que em mostrá-la como espetáculo). Do outro, o fogo é natureza, um elemento utilizado até como cura.
Assim, de certa forma, essa docuficção expande a sua zona material de conflito para a subjetividade poética e para como lida com a linguagem cinematográfica, assim como uma beleza e calma natural capaz de gerar tantos conflitos. O tempo que passa sem que percebamos se transforma então nesse processo de mudança do ambiente, essa exploração que causa destruição, que não permite ao equilíbrio ficar intocado. Como Encina comanda tudo isso sem nunca romantizar ou espetacularizar a violência, ao mesmo tempo que encontra uma beleza trágica nessa resistência natural de sobrevivência, é o que faz de “Eami” um filme dolorosamente lindo e único.