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|Crítica| 'Vidas Passadas' (2023) - Dir. Celine Song

|Crítica| 'Vidas Passadas' (2023) - Dir. Celine Song

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Vidas Passadas' / California Filmes

 

Título Original: Past Lives (EUA)
Ano: 2023
Diretora: Celine Song
Elenco : Greta Lee, Teo Yoo, John Magaro e Jojo T. Gibbs.
Duração: 106 min.
Nota: 4,0/5,0

 

Celine Song aproveita os clichês do romance e melodrama para ressignificar a torcida do amor impossível em uma compreensão dos destinos reais que vivemos

No cinema, é comum encontrarmos grandes histórias de amor que são impedidas por outros relacionamentos existentes ou outras barreiras da vida, distância, sociedade, classe, guerra, existem diversos elementos que podem ser usados para transformar um romance em algo ainda mais interessante por ser simplesmente, impossível. Talvez nenhum desses recursos seja tão parte do melodrama e tão gostoso de se torcer contra do que o próprio casamento, por Clint Eastwood, David Lean ou Wong Kar-wai, são pencas de exemplos de obras que nos fizeram torcer para que uma mulher largasse sua vida, e seu marido, para viver um outro amor. Esse talvez seja o maior trunfo que a diretora Coreana/Canadense Celine Song vai usar para tornar sua narrativa mais interessante, mudando um tanto a perspectiva, mas sem ser seu principal ponto de partida. “Vidas Passadas” é acima de tudo uma história sobre as próprias passagens da vida, e percorre seu tempo de duração como tal, sem medo de dar grandes pulos de décadas na frente, caminhando pelo destino de seus personagens como uma observação por janelas breves. A cada período é como se uma fresta fosse aberta para assistirmos como estão Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo), até o ponto em que nos é permitido participar passivamente. Mas, mesmo nos reencontros dos dois amigos de infância apaixonados, Song preserva sua emoção bem guardada nas estruturas aparentemente inabaláveis de Nora, é ela quem comanda toda a carga sentimental - e o olhar - liberando no momento certo um auge que engloba toda a bonita ideia do filme.

Trabalhando com dois pontos principais, “Vidas Passadas” também se vale muito da separação de seus protagonistas, seja visual ou não. Os planos que sempre os colocam em duas pontas, com barreiras entre eles, marcam não apenas duas pessoas que nunca estão no mesmo lugar (físico ou emocional), mas que também revelam questões de um pertencimento cultural e geográfico. A relação entre Nora e Hae Sung é mais do que uma ligação que sugestiona o romance, mas também um olhar para as diferenças de vida entre pessoas que seguiram suas jornadas onde nasceram, atreladas à suas culturas, famílias e costumes, e as que se mudaram e viveram caminhos completamente diferentes, numa quase crise de identidade por seguir padrões tão distantes daqueles projetados automaticamente no nascimento. Nora pontua algumas vezes esse sentimento, mas é sempre na separação dos dois personagens que notamos que tudo que os separa não é apenas um vôo de avião ou um casamento, mas toda uma jornada que seguiu para pontos afastados. A questão levantada nesses momentos é sobre quem seríamos se tivéssemos escolhido outro caminho, e assim, fica mais fácil compreender que Song não pretende unir esse casal que ficou lá na época de escola.

Entre saltos de mais de 20 anos e tantas mudanças, a diretora busca sempre destacar a movimentação de Nora em oposição a uma melancolia um tanto estagnada de Hae Sung, o que nunca vai cair em diminuir esse homem ou o colocar numa posição deprimente, há gentileza em como se lida com suas expectativas e emoções. A diferença cultural encontra em todos os pontos um lugar para se encaixar, assim como nesse, portanto, a dificuldade de Hae Sung de seguir em frente parece sempre atrelada à vida que escolheu, enquanto Nora se torna mais ambiciosa com outras questões, vivendo na américa do norte. Da mesma forma, a aceitação de seu marido com toda a situação, sua forma como mulher de se posicionar firmemente de acordo com seus sentimentos, e toda a maneira como encara esse reencontro cheio de expectativas, revela o quanto os dois antigos amigos estão separados por tantas coisas invisíveis. As crianças apaixonadas não existem mais, as personalidades, desejos e sonhos são outros, o amor portanto não é impossível porque alguém os impede, ou porque a viagem é longa demais, mas porque não há razão para existir. Isso não significa que não seja doloroso e que o drama do filme não trabalhe as complexidades dessa montanha-russa emocional.

Mesmo nos detalhes mais singelos, e quando brinca com os clichês quase dando pistas de que a qualquer momento sua narrativa sucumbirá e nos dará ótimos motivos para que aquele casal largue tudo e fique junto, Celine Song não desiste nem no último minuto de compreender que nos tornamos outras pessoas e nossos destinos mudam. E, mesmo que Nora libere uma emoção dentro e fora da tela, não é tristeza que fica, “Vidas Passadas” tem muito carinho com as passagens, com os amores que permanecem e os que vão, mas principalmente com o acolhimento de que o destino real em que estamos não é triste por se pensar em tudo que não vivenciamos, e sim forte por ser tudo que nos pertence agora. Sempre me pareceu melhor um mundo em que Francesca Johnson não optava nem pelo marido nem pelo fotógrafo, e parece que Celine Song deu voz e apoio o suficiente para que, ao menos sua protagonista, escolhesse e abraçasse seu próprio caminho.

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