|Crítica| 'Um Herói' (2021) - Dir. Asghar Farhadi
Crítica por Victor Russo.
'Um Herói' / Califórnia Filmes
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Não importa as boas ações e intenções dos personagens, o mundo de Farhadi vai destruí-los da mesma forma, enquanto sufoca o espectador no caminho
Com um filmografia recheada de grandes filmes recentes, como “A Separação”, “À Procura de Elly” e “O Passado”, Asghar Farhadi construiu sua assinatura com longas de estética bastante realista e que se movimentam por uma teia de eventos e desencontros que levam personagens bons, pessoas comuns, a serem encurralados e tomarem decisões questionáveis, construindo um efeito bola de neve sem qualquer chance de uma resolução favorável para essas pessoas.
Porém, se nas obras anteriores do diretor estávamos acostumados a enxergar tudo por diversos pontos de vista e com várias informações sendo escondidas inicialmente e para serem reveladas na hora certa a fim de gerar mais conflitos, em “Um Herói”, vemos quase tudo por apenas um ponto de vista: Rahim.
A sequência inicial já nos revela com pequenos detalhes aquilo que está por vir na vida desse protagonista. Ele sai da prisão e perde o ônibus. Em seguida, anda por um terreno arenoso até chegar em uma escada improvisada de vários andares. Rahim a sobe e Farhadi nos obriga a ver sem cortes essa subida completa, andar por andar, deixando claro desde então que a jornada desse homem a fim de provar sua inocência e se livrar da dívida que o colocou na prisão não será nada fácil.
Mas, ao contrário dos longas anteriores, aqui observamos o panorama geral sendo construído desde o início. A relação secreta de Rahim por Farkohondeh que o leva a mentir para protegê-la, sua dúvida entre entregar o ouro para quem o perdeu ou pagar sua dívida, a razão do ódio de Bahram por Rahim, a ambiguidade do diretor da prisão entre apreciar a boa ação do protagonista e se promover a partir dela etc.
É uma trama que não constrói seus problemas a serem resolvidos ou reviravoltas por meio de omissões. Muito pelo contrário, Farhadi nos aprisiona ao lado de Rahim e nos faz tomar todas as decisões junto com ele. A gente percebe desde o início que aquele é um homem que só quer fazer a coisa certa para acertar sua vida. Mas não importa o quanto ele lute para fazer o certo, a sociedade e as instituições parecem sempre dispostas a quebrá-lo. Mais do que isso, a sociedade quer vê-lo como criminoso, primeiro se usando de sua imagem para construir uma narrativa de heroísmo para depois questionar todas as ações por trás desse “heroísmo” até torná-lo vilão.
Só que, a grande sacada do cinema de Farhadi é não criar necessariamente heróis e vilões. É quase como se uma força mística agisse e obrigasse os personagens a tomarem decisões questionáveis. A instituição que usa a bondade de Rahim para ajudá-lo e depois se vira contra ele realmente tem uma boa intenção. Bahram tem razões para odiar o protagonista, não ceder às suas ofertas e se revoltar contra a adoração ao “prisioneiro herói”. O setor disposto a contratar Rahim tem motivos para questionar sobre toda a história antes de assumir esse “risco”. Até mesmo o diretor da prisão parece não perceber que está usando o preso, é como se realmente acreditasse que está fazendo algo bom, e, não por acaso, é o último a permanecer tentando livrá-lo de toda a enrascada.
Então, o que torna “Um Herói” essa experiência tão sufocante é justamente percebermos a ironia de seu título. Entendermos que não há heróis ou vilões, mas, sim, uma sociedade cética e complexa, que ama criar heróis da mesma forma que enxerga vilões em todos os lugares. Isso é percebido justamente em como essa trama se desenrola diante dos nossos olhos. Farhadi nunca força para criar uma pedra no caminho de Rahim, esses problemas surgem com extrema naturalidade.
E voltamos mais uma vez para a escolha do ponto de vista. Colocar o espectador ao lado de Rahim desde o primeiro segundo e não abandoná-lo nunca torna a experiência ainda mais dura. Isso porque, Farhadi não está preocupado apenas com os problemas a serem resolvidos pelo protagonista para se safar da prisão. O diretor escolhe uma decupagem que nos faz realmente viver ao lado de Rahim, ao vê-lo comendo, demonstrando carinho pelo filho, encontrando-se às escondidas com a mulher que ama, conversando com a irmã por quem demonstra afeto e assim por diante. Por isso, ter que tomar as difíceis escolhas ao seu lado, como lutar pelo emprego sem encontrar a mulher da bolsa ou mentir constantemente para proteger a mulher que ama, faz o público sofrer ao lado do protagonista não permitindo que enxerguemos um caminho possível em que tudo daria certo.
Assim, a decupagem que explora o cotidiano, a estética mais realista que torna todo aquele mundo uma versão ainda mais pessimista (ou apenas realista) da nossa sociedade e a aproximação com o protagonista a partir do momento que seguimos o seu ponto de vista e percebemos suas ações antes mesmo delas serem executadas, faz de “Um Herói” um longa com toda a assinatura de Farhadi e o seu poder dramático pela desgraça do ser humano no mundo, ao mesmo tempo que é também o seu longa mais diferente em escolhas narrativas.