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|Crítica| 'Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados' (2024) - Dir. Emily Atef

|Crítica| 'Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados' (2024) - Dir. Emily Atef

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados' / Imovision

 

Título Original: Someday We'll Tell Each Other Everything (Alemanha)
Ano: 2024
Diretora: Emily Atef
Elenco :Marlene Burow, Felix Kramer, Cedric Eich, Silke Bodenbender e Christine Schorn.
Duração: 129 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Pelo romance e pela tragédia, Emily Atef analisa um período de transição e o complexo impacto entre seguir em frente e desaparecer junto ao que restar

A fotografia quente de verão bucólico remete à Itália, mas os habitantes desse interior da Alemanha estão longe da romantização imaginada nos filmes de férias. Suas vidas parecem paradas no tempo, reforçando sempre nas cenas uma forma simples de viver, das fazendas, do trabalho bastante manual, os livros desgastados e velhos e a luz amarelada, tudo remete a um passado que, com a chegada de uma carta, é confrontado com o presente em uma transição marcante. A ida dos jovens até o outro lado da Alemanha revela uma sociedade moderna e cheia de novidades, o mundo retrógrado de Emily Atef é, na verdade, socialista e ao atravessar a fronteira, o que se vê além da uma cor que perde rapidamente os tons quentes mais destacados, é o deslumbramento do capitalismo. Maria (Marlene Burow) e Johannes (Cedric Eich) são colocados em meio a todas as novas possibilidades, já no caminho o carro toca música americana, os cigarros se acendem, e o longa diz com todos os seus recursos que existe liberdade do outro lado, muitas possibilidades do que comer, do que comprar, e em como gastar um dinheiro escasso que o jovem aposta na câmera fotográfica, seu primeiro aparato do futuro como artista. A queda do muro aqui representa possibilidades adiante prontamente agarradas por Johannes, que já começa a traçar muitos planos, sua mente parece se adaptar rapidamente à mudança drástica que é unificar um país tão dividido ideologicamente, assim como a vizinhança rural começa a se esvaziar. Maria se vê estagnada, sem saber como se mover, entre seguir em frente com o namorado cheio de sonhos ou permanecer e desaparecer junto com o que restar ali, agarrando uma nova paixão, uma aventura, com o homem agressivo, muito mais velho, tão parado no tempo quanto o lugar que os cerca.

O cenário político complicado permeia tudo o que acontece, mas existe uma complexidade própria no relacionamento entre a garota de quase 20 anos e o bruto Henner (Felix Kramer), de 40, iniciado e pautado em uma dominância do homem com a passividade de Maria. Existe violência em como ele toca o corpo dela, como lida com sua figura delicada, enquanto ela sempre apresenta relutância ao mesmo tempo em que quer se entregar. É um jogo ambíguo que Atef cria entre seus personagens, a atração por uma opressão, uma sedução por algo conhecido, antigo e que domina, que pode ser simplesmente lido como a ligação entre a jovem e o socialismo, ao passo que seu relacionamento com Johannes representaria a suposta liberdade do mundo capitalista, mas para além de uma busca por significados, Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados lida com essa relação por um viés próprio e trágico, muito alinhado com os livros russos que Maria tanto lê. O título e o trecho final dito por Maria são retirados do último romance de Dostoiévski, embora seja em Tolstói que encontre-se a inspiração do desfecho para Henner, a morte e o amor, entre muitas questões existenciais e morais, são presentes de forma inflamada em toda essa literatura. Da mesma forma, muito do que se vê ilustrado na obra de Atef vai nessa tentativa de trabalhar seus temas a partir das relações, do contato entre personagens com um romantismo que destaca o cenário muito maior e além deles. 

Todo o cenário da pequena cidade começa a desaparecer lentamente quando o “progresso” chega, mas Maria não lida frontalmente com essas questões, apenas pela subjetividade, sua cabeça sempre focada nos livros muda de foco para a paixão, seu corpo sente dores físicas pela separação, assim como sente aversão ao jovem namorado. Enquanto as pessoas perdem tudo, comércios se fecham e a moeda é trocada rápido demais, outros aproveitam, viajam e conhecem o mundo, existe uma bolha em que Maria e Henner se fecham para apenas vivenciarem suas paixões físicas. Vê-se na forma como o sexo é retratado primeiramente entre os dois jovens, com Maria no controle e os corpos similarmente unidos, e posteriormente, entre ela e o bruto Henner, como a dominância e a submissão são muito marcados, em uma dualidade de ânsia e relutância da mulher por esse papel. A agressividade é vista com péssimos olhos por boa parte do público, hoje muito conservador em relação a cenas de relações sexuais e muito preso a uma moralidade que não conversa bem com o cinema, o que é curioso, já que pensamos aqui um filme que retrata justamente uma transição marcada pela diretora entre opressão e liberdade, em que o progresso vem com a possibilidade de fazer arte. 

A bifurcação em que Maria se encontra não pode ser resolvida por sua própria escolha, é a movimentação de outros que desenha seu destino - assim como foi para muitos que habitavam um país que se transformou -, a tragédia do romance russo, a morte, determina que a dominância do passado deve ser deixada para trás, mantida na memória como um segredo, enquanto tudo que ela conhece desaparece aos poucos, a forçando a seguir em frente. Os registros de Johannes são como as últimas lembranças de um mundo prestes a deixar de existir, observado por Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados como um verão nostálgico europeu, típico da adolescência em um coming of age, mas permeado por questões mais complexas do que sua narrativa romântica sozinha é capaz de dar conta.

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